13 de maio: 127 anos após o fim da escravidão, racismo divide a sociedade

Negros relatam seus dramas e mostram que o problema está longe de acabar

Do Jornal do Brasil

No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinava a Lei Áurea, pondo fim no ainda Império do Brasil a todo o trabalho escravo existente. Após 127 anos da promulgação, a divisão entre negros e brancos ainda insiste em existir no país, sob a cruel forma do racismo. “A gente passa por racismo todos os dias. É preconceito por ser negro, por ser favelado, preconceito por ser gordo”, reforça Renata Trajano, 35, moradora da Comunidade do Alemão.

“Não acho que tem como acabar o racismo”, lamentou o jovem de 19 anos, morador do Borel, Igor Soares. “A gente precisa lutar contra todos os dias. Existem centenas de questões, um racismo internalizado. Não vai acabar, mas o que temos que fazer é continuar nesse enfrentamento todos os dias”, afirmou Igor.

O jovem contou que um dos casos que mais o deixou magoado foi quando foi vítima de racismo por parte de um policial, também negro. Igor contou ao JB que estava sentado na frente da sua casa, “fazendo qualquer coisa no celular, quando um PM apareceu e ordenou: ‘Cidadão, para a parede, já”, sem nem dar boa noite”. O policial, segundo Igor, não possuía identificação. No entanto, o rapaz insistiu em saber o nome do PM, e acabou informado, mas não sem ser completamente revistado depois. “Tenho um cabelo black power enorme. Depois que ele me revistou, chamou outro policial e começou a colocar a mão no meu cabelo, procurando alguma coisa que pudesse estar ali dentro. Fiz um curso de Direitos Humanos e falei com ele que isso era um crime de injúria racial, que ele não tinha o direito de colocar a mão no meu cabeço assim.” Depois do ocorrido, Igor tomou providências: foi à Comissão de Direitos Humanos da Alerj, denunciou o PM e foi garantido que o caso seria investigado. Ele ainda contou que, após o caso, o PM foi afastado por algum tempo do Borel.

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Igor, de 19 anos, teve seu cabelo revistado por policial

Para o professor de História do Brasil da Unicamp, Sidney Chalhoub, a mentalidade presente na sociedade hoje é uma herança dos tempos da escravidão. “A situação aqui é a mesma que nos outros países que se apoiaram no trabalho escravo para se construir. Existem menos oportunidades econômicas nos dias de hoje, e segregação racial”, contou o professor. O pesquisador da Unicamp, integrante do movimento Raízes da Liberdade, Sérgio Teixeira, reforçou a visão do historiador: “Nossa nação é formada a partir da escravidão. A mão de obra foi trocada pelos europeus e os negros foram jogados às margens da sociedade, o que pode ser visto nas favelas do Rio, por exemplo.”

O estudante de Serviço Social na UFRJ Rafael Calazans, 23, conta que as atitudes de racismo são diárias. “A gente percebe que a questão racial existe e ela não é tão forte assim só no imaginário, mas também na carne viva. Quando vou, por exemplo, a um shopping, já logo reparo o segurança falando no rádio, começando a andar atrás de mim. Ou quando estou com amigos à noite e preciso pegar um táxi, dificilmente eles param para um negro. O que faço é pedir para um amigo branco que está comigo para fazer sinal. Aí sim eles param. Um taxista não parar para você à noite porque você é negro é um soco na cara”, reclama o estudante.

Sérgio Teixeira, da Unicamp, diz que hoje no país há o que ele chama de “explosão racial” por conta da crise existente. Ele afirmou que os cortes afetam mais a população negra do que qualquer outra. “Quando temos um momento de crise como vivemos hoje, os cortes acabam atingindo os negros de uma maneira mais aguda, pois nós estamos localizados nos locais mais afetados, mais atingidos”, afirmou.

Rafael Calazans também acredita que o racismo exista nas áreas de divisão espacial da cidade. O estudante relata que quando está no ônibus voltando de locais como a Zona Sul do Rio, ele percebe a cidade “enegrecer”. “Cada vez que vou para lugares mais precários, maior é a presença de negros. Existe também o racismo espacial. Em locais como as favelas você vê um espaço que é predominantemente negro, carecendo de diversos serviços de direitos básicos, como esgoto, água, luz, ruas, calçadas, escolas e postos médicos”, afirmou.

Os especialistas destacaram um ponto importante na questão do racismo, que é a atuação policial. Para o professor de História Sidney Chalhoub, é preciso ver a situação com os olhares dos direitos humanos, “principalmente em relação à violência policial”. “Existe no Brasil hoje um setor da sociedade – os jovens, homens e negros – que sofrem um verdadeiro genocídio. É necessária uma política de direitos humanos para que essa situação seja abordada de maneira direta.”

Sérgio Teixeira foi ainda além e destacou a situação da população carcerária brasileira. “O número de negros que terminam o ensino médio é dez vezes menor do que o de brancos. A quantidade de negros assassinados pela polícia de São Paulo é quatro vezes maior que a de brancos. Para ter uma ideia da população carcerária, na década de 90 existiam 190 mil presos. Em 2014, esse número subiu para 570 mil. Destes, 80% são negros. Nos presídios femininos essa proporção chega a 90%. Isso demonstra que o negro está sendo substituído do banco da escola para o banco dos réus. Enquanto a população carcerária negra cresce, a população negra na escola diminui”, explicou.

Para Renata Trajano, um dos momentos que mais a traumatizaram foi quando um policial a chamou de “neguinha”, e a mandou ir para parede para ser revistada. “Foi um agente do Estado me mandando ir para parede, e ainda me chamando de neguinha. Ele era negro também, isso foi o que me deixou mais magoada. Era um representante do Estado, preconceituoso com uma pessoa da sua própria cor, um negro chamando outro negro em tom racista”, contou. Ela destacou que o tratamento comum nas comunidades para os negros é ser chamado de “neguinho” e “piranha” por parte dos policiais. “O racismo é uma coisa nojenta, asquerosa. Acredito que algumas pessoas cometem, falam as coisas que falam sem nem saber, mas a maioria fala o que fala com a intenção de machucar”, disse Renata.

Apesar da tendência de se acreditar que o racismo não irá acabar, o pesquisador Sérgio Teixeira afirma que a sociedade hoje está menos tolerante quanto ao racismo quanto era antigamente. “Principalmente hoje, dia 13 de maio, é preciso lembrar que esse questionamento é estrutural. Historicamente, o negro tem o papel de ser super explorado, e essa super exploração causa violência. Hoje existe um questionamento maior na sociedade. A população está tolerando menos os casos de racismo, porém ainda é um questionamento um pouco superficial. Por exemplo, todos acharam um absurdo a banana que atiraram no jogador brasileiro do Barcelona Daniel Alves, e o xingamento da torcedora do Grêmio dirigido ao goleiro Aranha, mas ninguém questiona o fato de que menos de dez porcento dos universitários serem negros”, afirmou.

Para o historiador Sidney Chalhoub, o que aconteceu de mais importante no país foi a derrubada do “mito da democracia racial, que existem relações homônimas entre negros e brancos e, portanto, uma igualdade real entre as raças.” Ele destaca que o Estado brasileiro tem uma participação muito importante, e que nos últimos 15 anos, houve políticas públicas de inserção de negros em universidades. “Apesar de ainda serem muito restritas às universidades, as ações afirmativas são obrigatórias para poderem lidar com o racismo existente historicamente no Brasil. Primeiro, elas precisavam ser consolidadas nas faculdades. Agora elas precisam ser expandidas, para que possam manter os alunos lá dentro. Além do mais, é preciso que o setor privado seja incentivado a reservar uma quantidade das suas vagas de contratação para negros em todas as esferas de atuação”. O professor destaca que o reconhecimento do problema racial no Brasil foi um passo muito importante, que está começando a caminhar na direção certa. No entanto, é preciso expandir ainda mais.

O estudante Rafael Calazans conta como vê o cenário na universidade. “Os cursos mais tradicionais, como medicina, direito, administração, tem uma presença maciça de brancos. Os cursos que são mais ‘periferizados’, menos investidos, há uma quantidade maior de negros, que entraram em grande parte por conta das cotas”, afirmou.

Chalhoub acredita que, para acabar com o racismo, é preciso um policiamento das próprias atitudes diariamente, um exercício de cidadania. “É preciso que todos estejamos alertas o tempo todo, para lidarmos com as situações do dia a dia. O processo geral de educação é importante para a população. A vigilância das práticas racistas precisa ser um exercício da cidadania. É uma questão de educação. E para isso é necessário uma expansão do sistema público de educação dos país, incentivando a convivência e acabando com esse tipo de pensamento.”

Para Renata Trajano, existirão muitas campanhas para acabar o racismo, mas isso não será alcançado em breve. “Acho que diminuir, sim, mas acabar. Bem, isso ainda está muito longe”.

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