Algumas ausências que foram paradigmáticas no debate eleitoral

Fátima Oliveira
Médica – [email protected]

Garatujei um ensaio sobre as eleições de 3 de outubro, mas muita água ainda vai rolar até dia 31, então vou matutar um pouco mais depurando minha análise, que parte da convicção de que a “onda verde” não foi um discurso que mobilizou corações e mentes, mas uma tática eleitoral competente e sedutora orquestrada de fora do PV para fazer Marina surfar. No segundo turno, pode se tornar uma armadilha… para Marina, que, se tiver máscaras, talvez seja obrigada a jogá-las ao vento! Mas isso é o amanhã bem próximo. E, como não sou futurologista, deixa pra lá.

Numa olhada de relance nos discursos das campanhas à Presidência, a concepção de mulher-mala (mãe e filho) foi o tom das propostas para a “saúde feminina”. Foi de amargar… Ai, meus sais! Voltaremos ao tema.

A ausência das questões pertinentes ao racismo contra negros (pretos e pardos) foi eloquente e fala por si. Decerto o racismo foi considerado tema espinhoso demais para se fazer presente na “pidança” de votos das principais candidaturas, inclusive nas da negra, que o escanteou.

Há uma espécie de profecia que diz que abordar “assuntos de negros” não dá voto. O contraditório é que negro vota! E, no Brasil, nós, a negrada, somos, no mínimo, metade do eleitorado. Todavia, não temos força política orgânica suficiente para elegermos candidaturas comprometidas com o combate ao racismo compatível com a nossa expressão no eleitorado. Discorrer sobre o assunto e suas diferentes e divergentes teorias daria páginas e páginas.

E eu, cá com meus botões, não posso deixar de me indignar quando dizem que falar sobre “questões raciais” no debate eleitoral é uma forma de dividir o povo brasileiro. Como assim, cara pálida? Num país de passado e cultura escravocrata, ainda de contornos fortes, a divisão é patente, naturalizada e banalizada. Querem nos roubar até o direito à identidade racial/étnica – sentimento de pertencimento a um grupo racial ou étnico, decorrente de construção social, cultural e política.

“O vocábulo racialização tem sido figurinha fácil no debate sobre ações afirmativas no Brasil, em especial sobre as cotas étnicas. Tenho a impressão de que o modismo no uso da palavra racialização serve a múltiplos senhores e a finalidades escusas. A inexistência de raças humanas é uma verdade científica, mas o racismo é uma realidade cruel, segregacionista, excludente e que frequentemente assume a face de genocídio, às vezes sutil, localizado, mas marcadamente genocídio, que conceitualmente consiste em atingir a integridade corporal ou mental para eliminar – no todo ou em parte – um grupo religioso, nacional, racial ou étnico. Ou ainda realizar deportações ou medidas contraceptivas sem o consentimento informado contra esses segmentos de uma sociedade. O racismo é um crime contra a humanidade” (F.O., in “Afinal, o que os letrados chamam de ‘racialização’?”).

O assunto merece análises mais aprofundadas, inclusive no veio “eleitoral”, em especial porque compartilho da opinião de que suplantar o racismo não é uma tarefa só de negros, mas do conjunto de uma sociedade que se diz democrática; e deve integrar qualquer projeto sério de nação, pois, como tenho dito à exaustão, “é certo que não construiremos um país justo e democrático sem que os brancos compartilhem com os negros os seus privilégios seculares. No caso brasileiro, compartilhar privilégios significa também que os brancos terão menos do que sempre foi exclusivamente seu. Não há como ser diferente”.

Publicado em O TEMPO, em 05.10.2010

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