Um almoço sertanejo de Natal para Maria Clara e Inácio – Por: Fátima Oliveira

Quando minha filha Débora disse que só viria dia 25 de dezembro, emendou algo assim como sugestão: “Ô mãe, vamos fazer um almoço de Natal como o da bisavó Maria no sertão, onde não havia ceia, mas almoço de Natal”. Respondi: “Gosto mais de almoço do que de ceia de Natal!”. Lá na Palestina, hoje Graça Aranha (MA), não dizíamos dia de Natal, mas dia do Nascimento, mas falávamos almoço de Natal…

Fiquei a matutar com meus botões que almoço de Natal é leitoa e peru (pena não ser peru caipira, engordado no chiqueiro uns dois meses antes); e no dia seguinte “quiabada do peru de Natal” – ossada do peru com quiabo, que vovó servia numa sopeira de porcelana tão linda que eu me perguntei por que nunca tive uma. Anotei mentalmente: eu mereço uma! Como não ter uma sopeira até hoje? Taí uma louça que é a cara da vovó! E fiquei pensando por que Débora e Lívia, de vez em quando, falam com saudades de coisas que só vivenciaram através das histórias que conto para elas.

E viajei embalada em memórias reconfortantes daquela mesa grande da copa aprazível da casa da vovó, onde a gente não sentia calor porque um lado era avarandado: a enorme sala de estar em L, a copa e a cozinha que davam para um saguão – separadas dele por um peitoril – que era um jardim, no qual havia, além de outras plantas, um pé de magnólia, um caramanchão com um pé de uva e uma frondosa laranjeira… Do outro lado do saguão ficavam dois quartos, um deles o meu – todos de parede inteiriça, mas com janelas que davam para o saguão. O quarto da vovó era enorme, na parte da frente da casa, ao lado da sala de visitas, separados do armazém por um corredor, e no fim dele a sala de estar em L, com cadeiras espreguiçadeiras, a cristaleira, a minha máquina de costura Singer…

A gente comia na copa num clima sempre refrescante e demorado: depois da comida, vinha a sobremesa, o café e só então levantávamos. Ninguém saía da mesa antes do cafezinho, mesmo as crianças, que não tomavam café! Tanto que vi minha neta Clarinha, que ama e faz questão de comer à mesa, e meu neto Inácio em um almoço de Natal em nossa casa do sertão. Ri da impaciência deles querendo sair da mesa antes do cafezinho e a vó Maria dirigindo-lhes uma olhada de rabo de olho, sem dizer uma só palavra, e eles entenderam que era uma repreensão (será?). Eles adorariam conhecer aquela casa e comer aquela comida, dita fidalga ou de banquete, dos dias de festas que vovó e mamãe faziam como ninguém.

Sou de uma família que se desdobrava na preservação da gastronomia religiosa, as ditas “comidas de preceito”, na Semana Santa, no São João e no Natal. Mesmo não professando nenhuma religião, faço questão de manter em minha casa tais tradições, pois a gastronomia religiosa católica é um bem cultural valioso. Tenho dito que “a comida é uma das expressões culturais mais expressivas de um povo, só comparável à língua, pois eterniza costumes, afetos e história, e que as saudades do paladar são memórias culturais eternizadas”.

E pensei que uma forma de matar minhas saudades daqueles almoços de Natal do sertão, além da comida, seria fazer a árvore de Natal como a da casa da vovó, que nada tinha a ver com pinheiro. Era de galho seco, pintado com tinta alumínio, envolto em algodão bem branquinho, imitando neve (imagina neve no sertão!), e com bolinhas de vidro de muitas cores… Espero que Clarinha e Inácio gostem e, se agora ainda não são capazes de entender, um dia, vendo as fotos, decerto entenderão nossa cultura familiar.

Fonte: O Tempo

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