A ambiguidade dos corpos de nossos iguais: do desprezo à solidariedade

Tenho pensado em alguns episódios que vivenciei e testemunhei em que os corpos dos nossos iguais, negros e da classe trabalhadora, trazem uma ambiguidade na forma com que nos relacionamentos com eles. Como diz Judith Butler, em “Vidas Precárias”, “meu corpo me relata aos outros”. A filósofa explica que o corpo é constituído pelos discursos sobre ele e a partir disso, surgem formas de tratamento desses corpos, institucionais e interpessoais. O corpo negro foi construído como um corpo que tem uma raça, inferior ao corpo branco, por sua vez, ligado ao belo, bom, nobre, à civilização, à superioridade não somente física, mas moral, à “raça que não comete crime” (ver o caso do médico italiano Cèsare Lombroso, 1835-1909). E parece que há juízes brasileiros, em 2020, que ainda não atualizaram suas referências, permanecendo em 1800.

Certa vez, quando trabalhava em um Centro de imigrantes em situação de rua, na Itália, vivenciei algo que me fez refletir sobre isso. Eu distribuía roupas limpas para homens e mulheres que chegavam ao local para tomar banho e fazer uma refeição quente. Esses corpos chegavam exaustos pelo frio,  pela fome e pela violência das ruas. Um a um, eles entravam na sala, escolhiam suas roupas, se dirigiam ao chuveiro e, logo em seguida, ao refeitório. Um homem negro entrou, começou a caminhar ao redor, até que um italiano, que também trabalhava ali, disse-lhe de forma áspera e desrespeitosa que se apressasse na escolha, pois ele não tinha todo o dia à sua disposição. O homem se calou, mas estava visivelmente afetado com aquelas palavras. Então, eu, calmamente, voltei-me a ele e perguntei “O senhor já terminou de escolher sua roupa?”. Aquela foi a gota d’água para a sua explosão de fúria que se voltou toda contra mim, a única mulher negra na sala, o corpo igual ao dele, o mais acessível para descarregar toda a  raiva de  uma sociedade que o humilhava e o excluía. Aquele homem incorporou a hierarquia dos corpos, apontada pelo racismo estrutural.  Contra o corpo de um homem branco, italiano e em uma posição de poder com relação ao seu, esse não ousou se dirigir e revidar a ofensa. 

Quantas vezes em postos públicos de saúde eu vi o povo esbravejar contra o atendimento lento e ineficaz, dirigindo-se com toda raiva às atendentes e enfermeiras, com o mesmo biotipo dos pacientes do SUS!  Mas quando chegava o “doutô”, geralmente atrasado, pois muitos atendem em clínicas particulares (ou porque não tinham nenhum compromisso com a qualidade do sistema de saúde e respeito pelos mais pobres) ouvia-se um silêncio total, às vezes uma bajulação desproporcional. Não se escutava nenhum insulto contra aquele corpo predominantemente branco, mesmo sendo ele, muitas vezes, a causa do atraso nas consultas. O contrário também acontecia: enfermeiras e atendentes muito valentes com os seus iguais, mas com a direção, médicos e médicas, falavam baixo e com tom de submissão. 

 O povo maltrata os seus iguais porque incorporou a ideia que existem corpos e corpos: há alguns para serem violados e até exterminados, outros para serem idolatrados. A violência quotidiana que o povo inflige contra os seus, na impossibilidade de descarregar sobre quem realmente o oprime me remete a uma historinha que li anos atrás em que o chefe briga com seu funcionário, ele guarda a ofensa e ao chegar em casa, desconta na esposa. A esposa, por não poder brigar com o marido, também por causa da relação de poder, descarrega no filho, e, esse, não tendo alguém abaixo de si para fazer o mesmo, chuta o cachorro. 

O corpo negro apreende o Não Valor na sociedade. Foi chocante ver o vídeo de uma mulher negra dentro de um ônibus no Rio de Janeiro, que ao tossir, durante essa pandemia, foi expulsa do veículo a pontapés e socos por homens, também pobres e negros. E esses mesmos homens que agem com tamanha covardia, são aqueles que trabalham para a classe média ou a elite branca, abaixa a cabeça e lhe deposita uma devoção quase religiosa.

Quanta violência cometida por policiais contra os corpos dos seus iguais! São chutes, pontapés, tapas na cara, torturas, esmagamento de corpos rendidos no chão e assassinatos. É tanta brutalidade que fico pensando qual é a imagem de si mesmo e qual a imagem dos outros lhes foram inculcadas.  É certo que existe uma lógica racista na corporação, assim como em toda sociedade, incorporada pelos agentes que aprendem quais corpos devem respeitar e quais corpos violar, quais vidas são precárias, como diz Judith Butler e quais são sagradas e invioláveis. Mas quanto “autocontrole” esses mesmos policiais demonstram diante dos abusos da classe média branca! É surpreendente!

Quando Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, fala da “cordialidade do povo brasileiro”, ele se esqueceu de pontuar que essa cordialidade é dirigida aos gringos (as) e aos brancos e brancas das classes privilegiadas. E quem recebe a “cordialidade” e se beneficia dela sabe tão bem disso, que não aceita nem mais ser chamado de “cidadão”, pois está muito acima da “ralé”, (conceito usado por Jessé de Souza), que cidadania é até ofensivo, como o caso do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Eduardo Almeida Prado, que rasgou a multa por não usar máscara, enquanto caminhava em uma praia e ainda humilhou o guarda. 

Entretanto, a outra forma de relação com o corpo dos nossos iguais, remete à empatia e à solidariedade, devido à condição de partilharmos de experiências que nos aproximam e nos são familiares.  É um alívio entrar num lugar e perceber que nossas corporeidades estão ali. Exemplo disso é a notícia de uma senhora idosa que ao consultar pela primeira vez com um médico negro, trazia em seu semblante uma expressão que dizia “Alguém como eu! Ele pode me entender!”.  É para nossos iguais que pedimos ajuda, como uma vez em que eu não tinha ninguém para deixar meu filho, no condomínio de classe média onde morava, em Jundiaí, pois a senhora que cuidava dele, iria chegar mais tarde e eu não podia esperar para não perder o ônibus. Então, bati na porta do apartamento em frente ao meu e pedi à empregada doméstica, uma senhora negra, para deixá-lo na cozinha, até que a babá chegasse. E foi assim que ela fez. E ainda me tranquilizou dizendo que a patroa nunca entrava ali e que nem chegaria a notar a presença dele. Aquela mulher era muito mais próxima de mim do que a dona da casa, mulher branca e burguesa. 

Lendo uma matéria sobre bebês negros nos Estados Unidos que têm mais chances de sobrevivência quando tratados por médicos também negros, através do estudo feito pela National  Academy of Sciences, eu pensava nas causas disso, mas infelizmente a matéria não revela, pois os pesquisadores acham precipitado qualquer conclusão. No entanto, podemos considerar como hipótese a empatia que se cria entre pacientes e médicos que compartilham da mesma raça. Não é automático que isso aconteça, por isso falo de ambiguidade, ora aproximando, ora distanciando ou desprezando. 

Dito isso, vejo que o que precisamos fazer, enquanto povo, negro e maioria nesse país, é “dessacralizar” os corpos brancos. Não para infligir-lhes a mesma violência que aplicam contra corpos negros, mas para colocá-los no seu devido lugar. Não decerto aquele da superioridade, da exclusividade, da adoração e bajulação, mas para que não se apropriem dos nossos corpos para a cultivação de si mesmos, como diz a antropόloga italiana, Michela Fusaschi, sobre cultivar o próprio ego, valendo-se da inferiorização dos outros.

 E mais, é urgente cessar de canalizar nossa raiva, nossa humilhação, nossa opressão diária para, na primeira oportunidade, descarregar tudo sobre os corpos de nossos iguais.  E bell hooks tem uma direção a nos indicar, “honrar a nós mesmas, amar nossos corpos” e acrescento, respeitar os corpos dos nossos iguais, romper o silêncio contra a opressão e a passividade diante dessa construção do corpo branco privilegiado como um altar onde esperam de nós devoção. Nos ver de outra forma, não no olhar e no espelho dos brancos, é  o caminho para quebrar essa imagem, assim, quebrar também essa “mania” de idolatrar a branquitude e de servir-lhe, participando indiretamente  no cultivo do “Pacto Narcísico” que brancos e brancas estabeleceram entre si. Quando começarmos a nos colocar de outra forma, a ocupar por direito cada espaço dessa sociedade, provocando fissuras nas estruturas sociais, reconstruindo novos parâmetros de relações, as coisas mudarão. Será um perigo, perigo para o privilégio branco e sossego para nossos corpos. 

 

Fabiane Albuquerque
(Arquivo Pessoal)

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia pela Unicamp

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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