A astuta reprodução do discurso patriarcal nos meios feministas

É assustador como o feminismo midiático se conforma com migalhas. Como, de alguma forma, a exaltação de corpos negros em situações exclusivamente de hiperssexualização, por exemplo, tem sido vista como uma vitória e que pronto, não precisamos mais de debate. Isso é uma ofensa ao real intento do movimento, para dizer pouco. É mais do que isso, é um desserviço, pois só reforça a ideia de que “tá no sangue”, de que ser uma mulher devassa e animalesca sexualmente é algo intrínseco à mulher negra. Isso é tudo menos um elogio.

Por Letícia Castor Moura, enviado para o Portal Geledés 

Mulheres se comparando umas às outras, buscando superioridade e notoriedade sobre suas irmãs, o que já é ruim o suficiente, baseadas no critério do quanto elas estão agradando o “seu” homem sexualmente. Precisamos redirecionar o nosso foco às pautas que realmente importam. Coisas como “quem está comendo não está reclamando”, dentre muitas outras similares, podem até de primeira vista parecer engrandecedoras, afinal, quem não quer ter uma vida sexual ativa, satisfatória?

Mas, ignorando completamente o quão excludente isso é com a população assexuada, que existe, que não é doente e que merece ser compreendida sem pré-conceitos idiotas, isso é, antes de tudo, mais uma ode ao sexo masculino e ao poder que ele tem sobre a gente. Podem repetir isso como piada o quanto vocês quiserem, mas a repercussão dessa linha de pensamento só mostra o quão enraizada é a cultura de determinação do valor de uma mulher sempre partindo da ótica masculina.

Responder “quem está comendo não reclama” a um insulto, por exemplo, pode soar empoderador, pode soar como uma frase duma mulher independente e o caramba a quatro, mas na verdade, só a diminui ainda mais ao reforçar que a visão que esta mulher tem de si mesma depende sim da aprovação masculina. Do ter sexo. Do fornecer um sexo que o agrade.

Não estou aqui pra falar que não devamos curtir nossa sexualidade ou que devamos nos envergonhar dela, jamais. Mas usar isso de régua pra dizer que somos livres e, ainda pior, inferiorizar outra mulher, tão oprimida estrutural e historicamente quanto você, porque na escala de agradabilidade pra macho, ela não está na mesma posição, isso é patético. Além de puro mau caratismo também.

Pode falar que é não é nada, que são falas inofensivas, que é problematização chique, fiquem à vontade. Mas se a gente só dá risada dessas coisas, acha que não tem importância e continua a perpetuar o ciclo, ele não vai parar é nunca. E a cultura se reforça tendo nós, as próprias vítimas do patriarcado, como suas grandes operárias. O sistema adora que a gente pense assim.

Nada como um subalterno tão embutido nas suas engrenagens que já faz todo o trabalho certinho, sem questionar ou tentar sair de lá. E neste processo, tudo conta. Nossas ações diárias, falas e brincadeiras. Que eu seja a chata, sem problema algum. Mas desta histeria eu me recuso a fazer parte.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Pedagogia de afirmação indígena: percorrendo o território Mura

O território Mura que percorro com a pedagogia da...

Aluna ganha prêmio ao investigar racismo na história dos dicionários

Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas,...

Peres Jepchirchir quebra recorde mundial de maratona

A queniana Peres Jepchirchir quebrou, neste domingo, o recorde...

Apenas 22% do público-alvo se vacinou contra a gripe

Dados do Ministério da Saúde mostram que apenas 22%...

para lembrar

As algemas de plásticos e o controle estético social no carnaval de Salvador

Ontem (28/02/17) foi o último dia de carnaval em...

Exposição: “Águas de Mãe Iemanjá”

Exposição: "Águas de Mãe Iemanjá" Enviado para o Portal Geledés 

“ All Eyez on Me”: Mano Brown, 2PAC e os ensinamentos da década de 1990

Esse texto é dedicado “a toda comunidade pobre da...

Educação contra a barbárie

O filósofo alemão Theodor Adorno propunha que, nas sociedades...
spot_imgspot_img

Educação antirracista é fundamental

A inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos das escolas públicas e privadas do país é obrigatória (Lei 10.639) há 21 anos. Uma...

Medo de gênero afeta de conservadores a feministas, afirma Judith Butler

A primeira coisa que fiz ao ler o novo livro de Judith Butler, "Quem Tem Medo de Gênero?", foi procurar a palavra "fantasma", que aparece 41...

Refletindo sobre a Cidadania em um Estado de Direitos Abusivos

Em um momento em que nos vemos confrontados com atos de violência policial chocantes e sua não punição, como nos recentes casos de abuso...
-+=