A cultura do estupro e suas diferentes intervenções nos corpos negros

Enquanto as mulheres negras estão mais vulneráveis a serem estupradas, os homens negros sofrem consequências de um “mito do negro estuprador” criado propositalmente como mais uma forma de nos machucar através do racismo.

Não é por acaso. Há uma explicação e a gente pode começar ela por aqui…

Não é incomum que se leia a respeito das lutas das mulheres historicamente a frente do seu tempo. O que pouco se discute é a diferença do que é ser uma mulher branca e uma mulher preta nos mais diversos espaços e ocasiões.

Mulheres brancas, por muitas vezes, tiveram que lutar por posições já ocupadas pela mulher negra.

Essa permanência da mulher negra no trabalho e na vida sexual não era feita de forma positiva, obviamente. Mulheres negras ocupavam esse espaço de forma obrigatória, escravizadas e sob posse de homens brancos. Por isso, o pontapé de mulheres não pode ser dado como único. Muitas mulheres pretas lutaram para ser entendidas como seres humanos enquanto as mulheres brancas já podiam se preocupar com outras questões sociais.

A maioria de nós já ouviu a expressão “não sou tuas negas”. A idéia inicial dessa expressão é a de que tudo é permitido em corpos negros. Durante toda a história, não foi diferente. Corpos negros não eram explorados somente através do trabalho braçal. Nosso corpo nu foi usado das mais diversas e abusivas formas.

Mulheres deveriam servir sexualmente aos seus senhores. Isso obviamente incomodava as mulheres brancas, que por sua vez, também nos abusavam psicologicamente e por muitas vezes nos agrediam fisicamente. Tortura era comum quando se descobria uma “traição” de seus maridos, como se algum dos atos fosse consensual por parte das escravizadas.

O tempo passou, mas a realidade para as mulheres negras segue análoga à era colonial. Ainda nos tempos atuais, corpos pretos e pardos são os mais vulneráveis a crimes sexuais, domésticos e de atentado violento ao pudor. ”Por mais que todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência, já que é sistemática, se faz importante observar o grupo que está mais suscetível a ela já que seus corpos vêm sendo desumanizados historicamente, ultrassexualizados, vistos como objeto sexual. Esses estereótipos racistas contribuem para a cultura de violência contra essas mulheres, pois elas são vistas como lascivas, “fáceis”, as que não merecem ser tratadas com respeito.” (Djamila Ribeiro).

Além das questões femininas, homens escravizados eram escolhidos para serem os reprodutores locais. Para que houvesse mais negros nascendo, e, portanto, mais posses na visão branca, alguns homens chegavam a ter mais de 200 filhos. Foi o caso de Roque José Florêncio, cujos filhos foram, ao que parece, documentados no antigo livro da Fazenda Grande.

Essa exploração sexual não parecia suficiente para a sociedade racista brasileira. O mito do homem negro estuprador surgiu a partir de uma necessidade de linchamento sem interferência. Afinal, ninguém ousava defender um estuprador. Inventavam estupros cometidos por homens negros pois, supostamente, temiam uma tentativa de dominação negra jamais ocorrida.

Para os dias atuais, seguimos com a hipersexualização do corpo negro. Frases como “da cor do pecado” e “volume do negão” reforçam uma cultura que reduz nossos corpos à satisfação de corpos brancos. Desde muito cedo, ouvimos que “vamos dar trabalho com tantas curvas”. Nunca tivemos o direito à não violação dos nossos corpos de forma implícita ou explícita.

O crime de estupro no Brasil só passou a ser considerado hediondo em 2009. Antes dessa data, as punições eram diferenciadas de acordo com quem era a vítima. Isso mesmo! Se um homem estuprasse uma prostituta, sua pena seria menor. O código penal também não considerava a possibilidade de outro homem ser vítima. Conjuntamente, dia 07 de agosto de 2009 foi a data em que se alterou o nome dado aos crimes sexuais, que antes, eram considerados crimes contra os costumes.

Pensando ainda nas diferentes posições entre brancos e pretos, deixo uma reflexão de Angela Davis em seu livro Mulheres, Raça e Classe:

“O racismo sempre serviu como um estímulo ao estupro, e as mulheres brancas dos Estados Unidos necessariamente sofreram o efeito indireto desses ataques. Esta é uma das muitas maneiras pelas quais o racismo alimenta o sexismo, tornando as mulheres brancas vítimas indiretas da opressão dirigida em especial às suas irmãs de outras etnias.”

Referências de pesquisas:

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/cultura-do-estupro-o-que-a-miscigenacao-tem-a-ver-com-isso/
https://www.socialistamorena.com.br/cultura-do-estupro-no-brasil-em-nosso-dna/
http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2016/08/escravo-reprodutor-pata-seca-teve-mais-de-200-filhos-e-viveu-130-anos.html
https://jus.com.br/artigos/37514/os-crimes-sexuais-e-a-lei-n-12-015-2009

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016, 244p.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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