A Exclusão e o Preterimento do Negro Gay Afeminado

Um quadro ancestral com desenhos lúdicos de cor negra que reluz ouro e não se é exposto na parede principal. A metáfora poética da não existência dos corpos negros gays afeminados na redoma das afetividades. A solidão que ocupa a grande parte de nossas vidas e orquestra nossos silêncios.

Hoje aprecio refletir no espelho a imagem de um belo quadro. Negro e banhado em ouro… Mas lembro-me bem dos dolorosos dias em que esse quadro não aparecia. No lugar dele, um menino, e anos depois, um adolescente que via seus olhos refletirem o auto-ódio que aprendeu desde cedo por ser negro, e em seguida, por não caber na lata de lixo tóxico que a sociedade preparou para moldar o que seria um menino, e posteriormente, um homem.

É quase missão impossível construir autoestima em um corpo negro gay afeminado numa realidade que, antes mesmo de nos entendermos enquanto negros gays afeminados, age violentamente em nossos psicológicos e em nossos corpos, fazendo com que todos odeiem nossos traços e abominem nossos comportamentos que não condizem com a heteronormatividade, e assim, todos aprendemos os valores culturais racistas, homofóbicos e sexistas que moldam os gostos pessoais que jamais gostam dos negros gays afeminados, incluindo os próprios.

Como um negro gay afeminado que aprendeu desde cedo a odiar suas características físicas e seus comportamentos que se distanciam da masculinidade performática, irá olhar para outro negro que carrega características como as suas com um olhar de admiração? Se somos condicionados à nos odiar, somos condicionados à odiar os nossos. É uma das formas mais eficazes para nos dominar, fazendo-nos acreditar que somos aberrações da natureza e que a culpa é nossa por sermos tratados como aberrações, até mesmo nos espaços em que teoricamente, tem suas existências pautadas na busca pela igualdade racial ou pela equidade de gênero.
No texto “Não há Hierarquia de Opressão”, a autora feminista negra estadunidense Audre Lorde nos traz uma séria reflexão… “Dentro da comunidade lésbica eu sou Negra, e dentro da comunidade Negra eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas Negras é uma questão lésbica e gay porque eu e centenas de outras mulheres Negras somos partes da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays, é uma questão Negra, porque centenas de lésbicas e homens gays são Negros. Não há hierarquia de opressão.”

Audre Lorde nos chama atenção para termos um olhar interseccional sobre as opressões. Um olhar refinado que nos permita ver, e nos faça entender, que determinadas pessoas estão em uma encruzilhada de opressões, como os negros gays afeminados, que encontram-se no meio do racismo, da homofobia e do sexismo, que encontram-se numa posição vulnerável e de não pertencimento nos espaços que não pautam nossas demandas, e quando pautam, não o fazem com seriedade. Quando estamos nos espaços organizados pelos movimentos LGBTQ+, não podemos apontar para o racismo produzido e reproduzido dentro dos movimentos. Somos silenciados no momento em que fazemos o recorte racial. Quando nos reunimos aos movimentos negros, em sua grande maioria, não abrem espaços para falarmos sobre a LGBTfobia, pois as pautas principais não estão destinadas aos LGBTQs negros. E é nesse local social de inexistência que os negros gays afeminados se encontram exclusos e preteridos.

Quantas vezes vocês viram negros gays afeminados como professores, coordenadores ou diretores de instituições de ensino? Quantas produções intelectuais de negros gays afeminados vocês leram? Quantas vezes vocês viram um veículo grande de comunicação convidar negros gays afeminados para falarem de suas obras intelectuais e de suas produções? Quantos negros gays afeminados bem sucedidos financeiramente vocês conhecem? Quantas obras literárias que abordam a existência de negros gays afeminados vocês já leram? Quantos negros gays afeminados vocês conhecem que estão em um relacionamento sério? Quantas vezes vocês questionaram a ausência de negros gays afeminados em espaços de poder? Quantas vezes vocês pararam para pensar sobre isso? E no local da inexistência, provamos o amargo sabor de sermos hipersexualizados, fetichizados, preteridos e excluídos.

Somos rejeitados inclusive por negros gays não afeminados, já que esses, por não terem trejeitos que a sociedade sexista julga femininos, estão sempre namorando brancos gays, que por serem brancos, são aceitos nos espaços e nas construções afetivas das pessoas. Enquanto negros gays afeminados são postos na inexistência, brancos estão estampando as capas de revistas de beleza, estão representando príncipes e galãs nos cinemas e nos programas de TV, são mostrados constantemente pela literatura e pela mídia que são sinônimo de sucesso e do que devemos almejar, e devido a essa construção social racista, negros gays não afeminados aceitam ser reduzidos ao que os brancos gays fantasiam sexualmente sobre seus corpos em troca de exibirem publicamente os seus namorados brancos como se esses fossem bilhetes premiados, e enquanto isso, outros negros sofrem em solidão… Quem vai querer um negro gay afeminado se surgir a chance de ascender, o mínimo que seja, ao lado de um branco? Constroem as corporeidades dos negros gays afeminados para serem indignos de receberem afeto e amor, tanto próprio, quanto dos seus semelhantes, o que faz inclusive do amor afrocentrado, um sonho praticamente impossível de acontecer, e se aprofundarmos a reflexão, logo podemos confirmar o apontamento na produção de conhecimento da intelectual negra portuguesa Grada Kilomba, que ao ser entrevistada pelo veículo brasileiro de comunicação Carta Capital, disse que “branco não é uma cor. Branco é uma afirmação política”, e nessa sociedade racista que foi fundada no escravismo de corpos negros, ser branco é ser a metáfora do poder.

Por mais inteligentes, lindos, comunicativos, educados e criativos que sejamos, por mais que tenhamos várias características que construiriam um relacionamento saudável e feliz, não somos vistos como pessoas apropriadas para qualquer construção afetiva. Somos vistos como seres promíscuos que carregam no DNA um insaciável desejo sexual. Somos vistos como os corpos que merecem sexo no escuro. Escondido. À margem do campo de visão de qualquer cidadão de bem que vê os negros como pessoas “quentes no sexo”, gays como devassos e a feminilidade inferior à masculinidade. São essas violências que os negros gays afeminados são sujeitados. Desrespeitos, insultos, assédios, estupros, assassinatos…

***
No texto “Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”, a Filósofa negra brasileira Sueli Carneiro, faz a seguinte pergunta: “Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando?”, questionando a universalidade do que é ser mulher. Bebendo da produção intelectual de Sueli Carneiro, direciono o questionamento para os movimentos negros e movimentos LGBTQ+. Quando falamos em gays, de que gays estamos falando? Esse ser gay universal pautado nos movimento LGBTQ+ não contempla negros gays afeminados. Quando falamos em homens negros, de que homens negros estamos falando? Esse homem negro pautado nos movimentos negros não contempla negros gays afeminados.

Hierarquizar as violências que passo enquanto negro gay afeminado, seria escolher qual parte de mim iria proteger enquanto ao resto de quem sou, padeceria, e se alguma parte de mim padece, o todo sofrerá sérias consequências! É preciso que a sociedade entenda como funcionam as engrenagens das estruturas opressoras sobre as pessoas que carregam em suas existências, encruzilhadas de marcadores identitários que são alvos constantes de violências físicas e psíquicas, e para essa compreensão social, a educação (formal e informal) gere o papel fundamental na desconstrução das violências. Uma educação inclusiva e representativa. Um modelo educacional que abrace e respeite a diversidade e suas manifestações em todas as cores e formas. Uma educação apta à pautar com responsabilidade sobre raça e gênero numa perspectiva decolonial, onde só se é possível, quando todos assumem suas responsabilidades sociais. Não esqueçamos que o silêncio é ideológico! Ficar em silêncio enquanto a sociedade retira a humanidade dos negros gays afeminados, é compactuar com nossas mortes físicas e simbólicas. É assumir estar de mãos dadas com a opressão. É impedir que quadros negros banhados em ouro, não sejam postos nas paredes principais, e muito menos apareçam em outros espelhos.

Esse texto é dedicado à cada negro gay afeminado que está sofrendo em silêncio no âmago da solidão. Que nossas existências sejam narradas por nossas vozes e que possamos transcender as barreiras que nos impedem de acessar nossa humanidade. Somos potências ancestrais!
Em especial, agradeço as feministas negras por suas produções intelectuais que me possibilitaram ferramentas fundamentais para trilhar o caminho do autoconhecimento e de minha compreensão de mundo.

Leia Também:

Notas sobre amor, afeto e solidão do gay negro


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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