Por: Miro Nunes
As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre os processos que questionam a constitucionalidade da política de cotas para negros nas universidades públicas – duas ações de inconstitucionalidade de dois programas de ação afirmativa, modalidade cota racial, sendo uma do Partido Democratas (DEM) questionando a Universidade de Brasília (UnB) e a outra de uma pessoa física, contra a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – provocaram a veiculação de um manifesto em defesa das políticas de ações afirmativas na página B3 do caderno “Dinheiro” do jornal Folha de S.Paulo em sua edição de 3/3/2010. A publicação nesta editoria assume um aspecto interessante: coloca visualmente a questão racial no espaço da economia, que nos traz notícias, comentários e análises sobre as políticas econômicas e negócios praticados no país e no mundo.
Vale destacar, a título de não nos tomarmos como inocentes, que há muito segmentos da sociedade civil, em especial o movimento negro, que estudam as desigualdades no Brasil sob a perspectiva de raça e classe que dialogam, mas têm as suas especificidades. Dito isto e como vivemos em uma sociedade dominada pela imagem, a veiculação do texto “Você é a favor de um Brasil mais justo?” na editoria de economia de um dos principais veículos de comunicação do País (com posição contrária à do texto pago publicado) alcançou os olhos de operadores do mercado financeiro e do direito, leitores preferenciais das editorias de economia.
Vícios de linguagem e manipulação
Este público está ligado 24 horas por dia em qualquer movimento que signifique a curto, médio e longo prazos mudanças no mundo dos negócios. Um exemplo flagrante desta preocupação é a notícia publicada no mesmo dia e caderno, em sua última página (B12), sob o título “Rumor sobre Slim movimenta ações do New York Times”. A matéria fala a respeito do suposto (até aquela data) interesse do empresário mexicano Carlos Slim (controlador da Embratel aqui no Brasil, diga-se de passagem) em obter o controle do jornal nova-iorquino, onde ele já detém 7% das ações com direito a voto na empresa.
Nos dois últimos parágrafos, a matéria destaca os comentários de outro mega-empresário das comunicações, Rupert Murdoch (com negócios também no Brasil), que controla os concorrentes principais do NYT na cidade (The Wall Street Journal e o New York Post). Murdoch disse não acreditar na venda da empresa concorrente a algum estrangeiro e “menos ainda para um mexicano” (grifo nosso). Na linha seguinte, “o australiano (Murdoch) esclareceu que não se referia `racialmente´ e elogiou Slim”.
Por que Rupert Murdoch fez questão de, imediatamente, fazer a retificação de sua primeira declaração? É porque ele sabe o que representa – lá fora – um mal-entendido como esse envolvendo um grande mercado como é o hispânico nos Estados Unidos e nos demais países latinos, onde ele tem negócios e sócios. Já pensou se boicotam os produtos que ele vende no México e nos EUA em resposta à ofensa que poderia ter sofrido o empresário mexicano Carlos Slim?
Apesar dos adversários do que se convencionou chamar de “politicamente correto”, a atitude de Murdoch é exemplo da atenção dispensada por homens como ele a determinados vícios de linguagem que podem, se manipulados do ponto de vista econômico, causar prejuízos a grandes conglomerados empresariais. Este episódio, publicado no final de uma matéria sobre controle acionário, visualiza também a dimensão que parte da imprensa no exterior dá a determinados comentários e suas repercussões.
A campanha “Afirme-se”
Daí por que a publicação (mesmo paga) do manifesto “Você é a favor de um Brasil mais justo?” nas páginas de economia do jornal Folha de S.Paulo insere visualmente a questão negra no Brasil na pauta de temas a serem tratados jornalisticamente também sob o ângulo da economia. A população negra (pretos + pardos, conforme o IBGE) não apenas foi determinante na construção do país na época do regime escravocrata. De 14 de maio de 1888 até a presente data, este mesmo grupo continua decisivo no processo de construção do Brasil, apesar de ser o que ainda menos usufrui deste crescimento econômico.
Exemplo prático disso está na mesma edição da Folha na manchete do caderno “Cotidiano” com retranca na página C-3. Refletindo a principal manchete do jornal em 03/03/2010, a reportagem sobre o balanço do Plano Nacional de Educação período 2001 a 2008 informa que, entre 1994 e 2008, a Desvinculação de Receitas da União (DRU) retirou R$ 10 bilhões por ano (cerca de R$ 140 bilhões no total) da receita vinculada à aplicação na educação. Este montante, que deveria ter sido aplicado na escola pública, deixou, portanto, de beneficiar a grande maioria de negros matriculados nas unidades da rede de ensino público mantidas pela sociedade brasileira. Quem vai repor este “caminhão de dinheiro” ou reparar o prejuízo causado a estes milhões de crianças, adolescentes, jovens e adultos alunos e alunas da escola pública? (Boa pergunta para quem quer ser presidente da República).
Nesta mesma página (C-3, “Cotidiano”, FSP), no lado direito, uma pequena nota – coluna de 7,5 cm de altura – informa a respeito das três audiências públicas no STF que motivaram o manifesto “Você é a favor de um Brasil mais justo?”, de responsabilidade da campanha “Afirme-se”.
Algo que merece ser analisado
O concorrente direto da Folha, o jornal O Estado de S. Paulo, publicou no mesmo dia 3/03 próximo passado o manifesto “Você é a favor de um Brasil mais justo?” na página A15 de seu primeiro caderno, mais especificamente na parte reservada à editoria internacional que, neste dia, mais uma vez, destacou os acontecimentos sobre o terremoto no Chile em três das suas seis páginas.
O intertítulo da reportagem foi expresso por duas palavras, sendo uma delas “tragédia”. Aqui cabem duas interpretações que visibilizam a desigualdade de forças dos atores sociais. Por um lado, é trágica a possibilidade de ser reconhecida a inconstitucionalidade da ação afirmativa pelo STF, o que promoveria um retrocesso na promoção de justiça social no Brasil. De outro, a escolha do local da publicação revela mais da posição do jornal do que “n” editoriais que veicule contra as cotas raciais nas universidades públicas.
Em geral, a posição do anúncio é estabelecida pela direção da redação com orientação do departamento de publicidade e marketing. Ou seja, o editor recebe a página já demarcada, principalmente quando os anúncios são de tamanho expressivo. Como a “ordem” da posição do anúncio “parece vinda de cima”, fica claro que em seu “subconsciente bem consciente” o Estadão julgou ser este tema externo à sociedade brasileira.
Na página A10 da mesma edição de 3/03 do Estadão, foi publicada uma matéria no alto da página em seis colunas com o título “STF abre debate antes de julgar ação contra cotas”, assinada por Mariângela Gallucci (Brasília) e Roldão Arruda (São Paulo). A matéria é iniciada com a tentativa frustrada do Partido Democratas (DEM) de pedir a revisão do critério de escolha das pessoas e entidades que participariam diretamente, por 15 minutos cada uma, da audiência pública no STF. O texto é encerrado com a informação de que a TV Câmara lançaria no dia três de março um documentário denominado (será por acaso?) Raça Humana, de Dulce Queiroz, retratando “as tensões causadas pelas cotas raciais na UnB” com depoimentos favoráveis e contrários às cotas instituídas por esta universidade pública.
Em termos de espaço de matéria jornalística propriamente dita, a edição do Estadão concedeu um destaque bem maior às três audiências públicas no STF do que a Folha em suas edições de 3/03 próximo passado. No entanto, a relevância da publicação do manifesto na editoria de economia da FSP é algo que merece ser detidamente analisado.
Fonte: Observatório da Imprensa