A urgência da fome

Por uma porção de conveniência política e um punhado de incompetência técnica, o governo de Jair Bolsonaro adiou para depois das eleições 2020 a decisão sobre a política social no pós-pandemia. Na prática, ficará para 2021, já que o segundo turno do pleito municipal está marcado para 29 de novembro. Assim, ignorou-se descaradamente a regra número um de quem se ocupa do combate à extrema pobreza: quem tem fome tem pressa. A frase eternizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, deu na cruzada brasileira pela erradicação da miséria; desaguou no Fome Zero, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva; emendou no Bolsa Família. Rendeu a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, no início desta segunda década do século XXI, que chega ao fim com o recrudescimento da insegurança alimentar.

O aumento da vulnerabilidade social mundo afora, durante a pandemia da Covid-19, explica o Nobel da Paz concedido ao Programa Mundial de Alimentos, WFP da abreviação em inglês. A agência da ONU foi reconhecida pelas ações de combate à fome, por melhorar condições de paz em áreas de conflito e por atuar contra o uso da falta de alimentos como arma de guerra, informou o comitê norueguês do prêmio. Resumindo em hashtag: #comidaépaz. Segundo as Nações Unidas, o WFP é a maior organização humanitária do mundo; em 2019, assistiu 97 milhões de pessoas em 88 países. Foi festejada pela complexa logística que construiu para levar alimentos onde há fome na África, na Ásia e na América Latina. Opera com mais de cinco mil caminhões, uma centena de aviões, 30 navios.

O relatório “Estado da insegurança alimentar e nutricional no mundo”, lançado em julho por cinco agências da ONU, estimou que, em 2018, pelo menos 820 milhões de pessoas passavam fome no planeta. O diagnóstico já punha em risco a meta de universalizar o acesso a alimentos até 2030, conforme estabelecido nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com a pandemia da Covid-19, a situação se agudizou. Em meados deste ano, as estimativas chegavam a 132 milhões de novos famintos, em decorrência da recessão global. Para conter a escalada, o WFP anunciou que precisaria arrecadar US$ 6,8 bilhões nos próximos seis meses; até o início da semana, conseguira um quarto. A Oxfam calculou que, de março a junho deste ano, 73 bilionários da América Latina e do Caribe, Brasil incluído, ficaram US$ 48,2 bilhões mais ricos.

No Brasil, o IBGE disparou o alerta quando contou 10,3 milhões de brasileiros com privação alimentar grave no biênio 2017-2018. Foi consequência da recessão profunda dos anos anteriores, que a recuperação modesta do triênio 2017-2019 não superou e, agora, retorna com a pandemia. Em projeções otimistas, o PIB brasileiro cairá 5% em 2020. O auxílio emergencial de R$ 600, pago a 67,8 milhões de pessoas até agosto, ajudou a aplacar os efeitos socioeconômicos da crise sanitária. Mês passado, o governo decidiu, por restrições orçamentárias, cortá-lo à metade e prorrogá-lo até dezembro. A decisão é insuficiente para dar conta da vulnerabilidade avassaladora. Na última semana de setembro, o país tinha 13,3 milhões de desempregados e outros 15,4 milhões de trabalhadores que só não buscaram ocupação por causa da pandemia ou falta de vagas.

Para piorar, a inflação dos alimentos é galopante. O Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda mostrou que, em setembro, a variação de preços para os lares com renda mensal inferior a R$ 1.650 ficou em 0,98%, o triplo da observada entre os mais ricos (acima de R$ 16.509,66). Preços da alimentação explicam 75% da carestia. Desemprego alto, queda de renda, escalada no valor da comida, crianças sem aula e sem merenda resultarão em aumento da pobreza extrema. Por isso, é tão urgente que o país ponha de pé uma política social robusta.

A equipe de Paulo Guedes e os interlocutores do ministro da Economia no Congresso Nacional têm se ocupado mais do debate fiscal que da arquitetura do programa que coexistirá ou substituirá o bem desenhado Bolsa Família — este voltado à erradicação da miséria a médio e longo prazos, via transferência de renda vinculada a exigências em educação e saúde. A emergência é assemelhada ao alerta de Betinho em 1993, ano de lançamento da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria. O Brasil foi capaz de transformar a mobilização da sociedade civil em política pública. Alcançou a própria ONU: Fome Zero batiza o segundo dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O brasileiro José Graziano da Silva, que esteve no governo, presidiu a FAO, agência da ONU para Alimentação e Agricultura, de 2012 a 2019. Ano passado, na despedida, foi homenageado pelo WFP.

O movimento social faz o que pode. A Central Única de Favelas já distribuiu 1,350 milhão de cestas de alimentos e 59 mil vales de R$ 120 a mulheres chefes de família. A ajuda soma R$ 169 milhões. No Complexo do Alemão, o gabinete de crise distribuía cinco mil cestas básicas por mês no início da pandemia; hoje, o jornal “Voz das Comunidades” segue doando 600. A ONG Redes da Maré, de março a setembro, atendeu 17 mil famílias com kits de alimentos e itens de higiene. São apoios fundamentais, mas que não prescindem do Estado. O Brasil tem história, tecnologia social e gente capaz. É sair da política rasteira e agir.

 

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