Faz algum tempo que sentimos uma inquietação de compartilhar um sentimento que assombra nossa vida acadêmica e acreditamos ser o sentimento de muitas outras pessoas desta geração que viram na educação uma possibilidade de mudanças estruturais no interior da suas famílias.
Quem é essa juventude negra e pobre que chegou ao ensino superior? O que mudou?
Do Coletivo Café das Pretas Enviado para o Portal Geledés
Constantemente temos a sensação de estarmos brincando de sermos acadêmicas e o submundo da nossa realidade familiar nos espera. Uma sensação autodestrutiva de culpa por ter saído dali e não conseguir mudar as estruturas dos que ficaram lá. Um sofá novo, uma conta de energia paga, uma dentadura para a mãe, brinquedos para as crianças. Isso não são mudanças estruturais!
Não são!! Não são!! Cadê o que a educação prometeu?
Certa vez uma amiga disse: “Vi seu pai, embriagado, falando só, fisionomia cansada e entendo porque você corre tanto dessas dores…”
Uma força intensa me tirou dali, me levou para longe, me deu oportunidades e garantias educacionais, mas nós não merecia vir sozinha. Não merecia!! Eles deveriam estar comigo ou eu não sou digna de estar aqui. Quero voltar!
Um dia a miséria vai bater na sua porta! Ouço esta voz sempre depois de planejar aulas, de escrever um artigo, de ir pra aula, de ser aprovada em algum processo seletivo. Toda vez que avanço alguma etapa na vida acadêmica, e ocupo novos espaços, para não ser vista como precária, vou ensaiando, na minha cabeça, uma narrativa de apresentação para a primeira reunião: sou fulana, formada em tal área e só.
Mas a realidade grita e em poucos dias todos sabem e se espantam: nossa você é uma exceção!! Droga de exceção! Quase ninguém está feliz de verdade porque você superou “Tem uma miserável entre nós!!!” E pareço incomodar o status e a alta posição dos dignos.
Não é vergonha da vida, das origens, não é falta de pé no chão, nem vontade de viver ilusões, bolhas, fantasias. A gente aprende a honrar, respeitar e valorizar nossa história de vida e a luta de nossos familiares, mas às vezes dá canseira da narrativa sobre a pobreza.
Eu só gostaria de chegar em alguns lugares sem que e as pessoas não acessem antecipadamente minha vida pessoal e não construam narrativas sobre mim, gostaria de chegar e não viver condições difíceis e logo precisar do auxílio financeiro de alguém que você nunca viu na vida antes. Gostaria que as pessoas antes soubessem o que penso sobre determinado fenômeno social ou observe o quanto sou inteligente e comprometida.
Por que a precariedade desenha meus dias????
Essa gente que me acha indigna parece com a vizinha que, ao me ver no portão da casa dela, já nem perguntava e descia as escadas com a folha de capim cidreira. Tomávamos café da manhã todos os dias assim. Por que a vizinha ficou automática e já sabia o que eu iria pedir? “Capim cidreira para tomar com os irmãos”. Por que a vizinha construiu essa imagem que não me possibilitava sair do lugar. Será que eu não poderia ir à sua casa para pedir açúcar ao invés de cidreira? Ou mesmo dar um bom dia?
Não!! A vizinha já tinha sua narrativa sobre mim: eu sempre queria capim cidreira para fazer chá. Era minha única possibilidade todas as manhãs: chá e torrada.
Eu sinto que estou vivendo o perigo da história única que Chimamanda criticou.
Uma única história!!! É assim que me sinto ao ascender e ocupar aquele lugar que “não tenho dignidade para estar”. Vou subindo e mesmo quando não preciso de capim cidreira para tomar café da manhã, posso comprar leite, sinto aquele gosto do leite docinho, mas ao final do copo tem cocô de rato. Ele estava sempre ali para nos lembrar o que era viver na favela sem saneamento básico. Essa imagem da infância não sai da minha cabeça, nunca!
E parece desenhar minha vida inteirinha… alguns ratos surgem, e as vezes não me acho digna de tomar um bom leite, acho que vai ter fezes. Acho que não sou digna, melhor ficar sem leite, pelo menos não terei surpresas ruins…
Aquela realidade fixada em uma única imagem é tão perversa que quando compro um bom leite, nem posso contar que sei apreciar coisas boas e estou feliz por conquistar determinados bens, porque todos esperam eu chegar para contar como a vida é dura, como sou pobre.
Eles parecem os ratos que estragavam a felicidade que surgia uma única vez no mês, quando minha mãe podia comprar leite. Passei!! Consegui!!! Entendi!!! E eles aparecem para cagar no nosso leite, tratam de arrumar um jeito de nos lembrar o que é ser precária…
Aí sinto que não sou digna de estar ali, graduanda, professora, pesquisadora, mestranda, doutoranda!
Indigna!!!
Não por falta de inteligência, competência, comprometimento, vontade…
Acadêmica indigna!!!!
Às vezes sua mãe não tem nem o que comer o que você está fazendo aqui? Sua família morando em situação precária e você se dedicando à pesquisa?
Comprou sapatos novos, bons livros na mochila?
Olha lá, aquela casa velha, toda acabada!! É a casa dessa professora aí, essa que acabou de ministrar aula aqui nessa escola.
Dois parágrafos escritos e a preocupação toma o lugar da concentração… Como produzir?
Uma página lida e mil perguntas: será que minha mãe já almoçou? Onde estão meus parentes? A academia vai exigindo postura, produção, análises, dados e a realidade separada por alguns títulos está ali intensa, gritando… mas se o lattes não aumentar, isso aqui não é seu lugar.
Queria poder olhar para minha mãe e dizer que posso lhe dar o descanso merecido, que ela não precisa mais de um monte de faxina e compressas de água quente para aliviar a dor das varizes inflamadas no final do dia ou falar pro meu pai que o desemprego dele não é um problema e que tudo vai ficar bem, afinal estou formada e tenho um bom emprego. Mas não consigo, por mais que eu faça não é suficiente, nunca é!
Eu não sei como continuar…
O texto segue anônimo porque temos vergonha de que todos confirmem a nossa indignidade