Na quarta-feira passada (16), escrevi aqui neste espaço sobre a “experiência dolorosa” da perda de uma pessoa próxima e amiga, me referindo à morte da atriz Léa Garcia (1933-2023).
O estado de abatimento mal saiu de nossas mentes e corações e imediatamente somos afrontados com a notícia do brutal assassinato de Mãe Maria Bernadete Pacífico, ialorixá e líder de uma importante comunidade quilombola, o quilombo Pitanga dos Palmares, e até então coordenadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais de Quilombolas), em Simões Filho, região metropolitana de Salvador. Mãe Bernadete, como era conhecida também por sua liderança religiosa, foi morta aos 72 anos, de forma sorrateira e covarde, por dois motoqueiros encapuzados, praticamente na presença de familiares –seus três netos adolescentes.
Veja como são as coisas. Em 2017, Mãe Bernadete perdeu o filho, Flávio Gabriel Pacífico, conhecido como Binho, liderança do mesmo quilombo, em condições análogas à que agora ceifou a sua vida.
Duas situações devem ser levadas em conta quando falamos do assassinato de Mãe Bernadete e do seu filho: ambos lutavam pela posse definitiva de suas terras –o quilombo Pitanga dos Palmares é apenas certificado pela Fundação Cultural Palmares— e eram adeptos de uma religião de matriz africana.
Esses dois fatores têm levado a seculares conflitos e mortes de lideranças e de religiosos de forma escandalosa no país. No ano do assassinato de Binho, em 2017, o número de mortes violentas em comunidades quilombolas, por exemplo, apenas na Bahia, aumentou 350% em comparação ao ano anterior.
No caso de intolerância religiosa, de acordo com o Ministério Público da Bahia, só em 2019 foram notificadas cerca de 107 denúncias. Já a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, perto do mesmo período, ou seja, entre 2017 e 2018, registrou aumento de 124% desse tipo de crime no estado. Dentro de uma série histórica, com base em seis anos, houve um crescimento de 2.250%.
Associar o assassinato de Mãe Bernadete à questão religiosa não fica fora de contexto, uma vez que a religião sempre foi alvo de perseguição e preconceito, porque atinge pessoas negras e periféricas. O mesmo pode-se dizer da disputa pela terra, sobretudo em territórios quilombolas e indígenas.
Mãe Bernadete, certamente, pode ter sido vítima de um crime encomendado e o mandante do assassinato do seu filho pode ser o mesmo que ordenou o seu. A grilhagem de terras, com todo seu histórico de violências físicas e violações das leis, pode responder por essas mortes, mas sem descartar aí a questão religiosa.
“Ser quilombola é um ato de resistência”, disse Mãe Bernadete certa vez. Ela está certíssima. De acordo com o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), com base em dados do ano de 2022, o Brasil estima ter 1,3 milhão de pessoas que autodeclaram ser quilombolas, em um universo de 220 milhões de brasileiros. Como são dados inéditos, ainda não sabemos o verdadeiro potencial desses números –se aumentaram, se diminuíram ou se estão estáticos.
Uma fala de Elida Laures, coordenadora de pesquisa da ONG Terra de Direitos, para a Agência Brasil, é bem representativa para atualizar o que vem acontecendo nos territórios quilombolas, especialmente no estado da Bahia.
“Existe um estado de vulnerabilidade dos quilombos que é resultado de uma fraqueza da política pública em assegurar os direitos territoriais quilombolas. E isso cria uma situação de exposição à violência, somada ao racismo institucional da sociedade brasileira, que faz com que os quilombolas sejam vítimas de atrocidades.”
Quilombos, desde o tempo de Zumbi, no século 17, sempre foram territórios que povoaram o imaginário do poder dominante e jurídico, no sentido do seu domínio e extinção pela força.
Não é diferente hoje em dia. A acepção de “quilombo”, palavra que traz por referência a língua kinbundu, falada em Angola, é ainda aterrador quando vertida para a compreensão da América portuguesa: “Local escondido, no mato, onde se abrigam escravos fugidos”, ou “povoação fortificada de escravos negros fugidos da escravidão, dotada de divisões e organização interna –onde também se acoitavam indígenas e eventualmente brancos socialmente desprivilegiados”. Também tem o sentido de “toda habitação de negros fugidos”.
Não é possível que em pleno século 21 os dicionários brasileiros e os sites de consultas do nosso idioma tragam acepções dessa natureza. A sociedade está adoecida pela má formação, que começa com uma educação baseada no eugenismo, na pureza e superioridade das raças –termo derivado de pensamento colonial.
O assassinato brutal de Mãe Bernadete e de seu filho não podem representar estatística macabra. Há uma sociedade que cada vez mais repudia essas atrocidades e exige, na prática, justiça efetiva. Até hoje não se esclareceu o assassinato de Binho.
Em nota pública, dirigentes da Conaq se referem a Mãe Bernadete como “uma luz brilhante na luta contra o preconceito, o racismo e a marginalização”. Mãe Bernadete expôs seu corpo no limite de sua resistência. Mas até quando lideranças como ela precisam resistir para o Brasil mudar?
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