bell hooks e as miudezas que importam

Ela mostrou que o feminismo é para todos, que educação é transgressão, que o amor não é privilégio só de alguns. Uma parte dessa senhora negra de letras miúdas findou hoje. Mas a grandeza de bell hooks não cabe no tempo.

Lembro perfeitamente a primeira vez que ouvi falar em bell hooks. Eu já era uma mulher adulta, mestre, versada nos estudos da escravidão no Brasil, querendo dialogar com o restante das Américas. Lembro também, que antes de tudo, antes de toda a mudança que ela trazia, pensei: por que as letras miúdas?

Vinha de um universo no qual o feminismo que me era apresentado não fazia sentido algum. As mulheres da minha família, todas elas, nunca tiveram a opção de não trabalhar. Nunca precisaram reivindicar por um direito, que na verdade era um dever que garantia a existência delas mesmas e de sua prole. Uma condição que não era exclusiva da minha família, e que era, e ainda é, a realidade de grande parte das mulheres deste país, sobretudo as mulheres negras. O feminismo que se dizia universal, mas que na verdade era branco, não me comportava. E, por isso, eu fechei as portas para ele.

Nessa mesma vida adulta, muitas amigas e colegas negras já tinham me dado a real, anunciado que eu precisava ler e estudar o feminismo negro e as feministas negras. Posterguei por um tempo, confesso. Mas aquele nome e sobrenome em letras minúsculas me intrigaram. Por que uma das maiores referências do feminismo negro mundial apresentava a si mesma daquela forma.

E foi numa espécie de puxão de orelha afetuoso, desses que as irmãs mais velhas dão, que bell hooks me ensinou que o feminismo, aquele que realmente importa, é para todo mundo. E ao redimensionar a própria ideia de feminismo, ela também lembrou, com a força dos que sabem e aprendem, o que Paulo Freire dizia há tanto, para tantos: ensinar também pode ser transgredir. Se a educação foi uma ferramenta amplamente utilizada na manutenção do sistema racista e de suas práticas excludentes, essa mesma educação pode transformar tudo o que está ao seu redor, contanto que a liberdade seja o norte dessa relação de ensinar-e-aprender.

No diálogo transnacional, que atravessou rios e oceanos, a senhora negra das letras miúdas conseguiu fazer quase o impossível: ver, falar e escrever sobre amor. Ao fazer isso, bell hooks subverteu a lógica do mundo que insiste em dizer que o amor é para alguns, os mesmos de sempre. Ela revelou possibilidades, acarinhou tristezas, limitou a solidão. Uma mulher que é teoria e prática, algo tão difícil nos dias de hoje.

E tudo isso, todos esses chamamentos e anunciações foram tecidos por essa mulher que sabia o tamanho que temos no mundo. Ao insistir em ser letra minúscula, bell hooks ampliou suas palavras (escritas e faladas), bem como as palavras que vieram antes dela, ajudando a pavimentar esse caminho que estamos percorrendo – e sobre o qual ainda há muito o que dizer.

Ao se fazer pequena, bell hooks deu a justa medida dos seres e das coisas. Do indivíduo, do coletivo, da comunhão, do mundo a ser mudado. E mais. Lembrou que a justa medida pode e deve ser múltipla, complexa, diversa, heterogênea.

Uma parte de bell hooks findou hoje. Mas permanece o olhar atento para as coisas miúdas – aquelas que doem, aquelas que alegram, aquelas que educam, aquelas que amam, aquelas que revolucionam.

A miudeza e a grandeza de bell hooks não cabem no tempo. Ainda bem.

+ sobre o tema

Senado confirma Ketanji Jackson como 1ª juíza negra na Suprema Corte dos EUA

Pela primeira vez desde a formação dos Estados Unidos,...

Maternidade e culpa

Quando o povo negro foi assimilado na cultura ocidental...

Por que a sexualidade da mulher é tratada como questão de saúde?

Tabus e mitos colocam o prazer feminino constantemente no...

ONU: preconceitos contra as mulheres persistem

Os preconceitos sexistas "arraigados" nas sociedades não diminuíram nos...

para lembrar

Escola de Predadores

Nosso repórter passou pelo treinamento de PUA em um...

Quando uma menina ergue a própria voz

Escrevo ainda sob o impacto da notícia de que...

ONU Mulheres faz, nesta 3ª feira, hangouts sobre Pequim+20

Evento online coloca em evidência o tema Mulheres no Poder...

Filha de líder polêmico será 1ª mulher a presidir Coreia do Sul

Park Geun-hye, de 60 anos, foi eleita na quarta-feira;...
spot_imgspot_img

Beatriz Nascimento, mulher negra atlântica, deixou legado de muitas lutas

Em "Uma História Feita por Mãos Negras" (ed.Zahar, organização Alex Ratts), Beatriz Nascimento partilha suas angústias como mulher negra, militante e ativista, numa sociedade onde o racismo, de...

Ausência de mulheres negras é desafio para ciência

Imagine um mundo com mais mulheres cientistas. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), isso é fundamental para alcançar a igualdade de gênero e...

Pesquisa revela como racismo e transfobia afetam população trans negra

Uma pesquisa inovadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), intitulada "Travestilidades Negras", lança, nesta sexta-feira, 7/2, luz sobre as...
-+=