Quem foi Beatriz Nascimento, pioneira nos estudos sobre quilombos

Uma das intelectuais mais importantes do país, a historiadora entrou para o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria no ano passado

Beatriz Nascimento é uma das intelectuais mais importantes do Brasil. Historiadora, ela foi pioneira nos estudos sobre as comunidades quilombolas no país. No ano passado, o nome dela foi incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, por meio de uma lei sancionada pelo presidente Lula (PT).

“Se lermos Beatriz Nascimento com profundidade, veremos como ela nos dá instrumentos de pensamento para nos protegermos e emanciparmos”, diz Bethania Nascimento, filha da historiadora.

Bethania é bailarina e mora em Nova York. Em 1992, ingressou na companhia Dance Theater of Harlem, onde atua como professora desde 2014. Ela é também autora do livro infantil “Betha, a bailarina pretinha” (Jandaíra, 2021).

Em 2021, Beatriz Nascimento foi contemplada com o título de doutora honoris causa pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e, em 2022, com o mesmo título pela UFF (Universidade Federal Fluminense).

Como intelectual, ela se dedicou a pesquisar sobre a história dos negros no país a partir do olhar dos próprios negros. Ou seja, para além da escravidão.

A descoberta de um livro sobre Zumbi dos Palmares, na casa de sua avó paterna, foi crucial para a sua escolha do objeto de estudo. Foi a partir daquele momento que ela questionou o por quê de nos livros de história os negros estarem representados só como escravizados.

A historiadora nascida em Sergipe se mudou para o Rio de Janeiro com a família quando jovem e foi na capital fluminense que passou a maior parte da vida.

Ela se formou em história pela UFRJ. Iniciou um mestrado em comunicação social, com orientação de Muniz Sodré, mas não pôde concluir o curso. Em 1995, foi vítima de feminicídio, aos 52 anos, ao tentar defender uma amiga do namorado agressor.

Cena do documentário “Ôrí” (Foto: Reprodução Ôrí Filmes)

SIGNIFICADO DE QUILOMBO

O livro contando a história de Zumbi mudou o entendimento dela em relação ao que era ser quilombola.

“Toma conta dela uma alegria muito grande, porque ali ela descobre o herói, como ela escreve na sua poesia: ‘eu te vi Zumbi sem cabeça nos livros de história’ “, afirma Bethania.

Para a filha, a historiadora passa a entender que os negros que foram escravizados são muito mais do que um produto do capitalismo. “Não são somente escravos e fugidos. A partir dali, ela começa a procurar esse herói, que abre as portas para ela encontrar o quilombo”, diz.

“Eu acho que nessa procura ela procura por si mesma e por todo um povo. [Por consequência] ela encontra várias nações, como era no continente africano.”

Por esse motivo, quilombo para a historiadora significava a continuação da África no Brasil, como estratégia política e de sociedade, segundo Bethania. “Ela nos guia a ler sobre quilombo e ver como eram as estratégias. Por que o momento do recuo é tão importante? Porque ele é a fuga para a proteção.”

Em uma entrevista para a revista Manchete, em 1976, reproduzida no livro “O negro visto por ele mesmo – Ensaios, entrevistas e prosa” (editora Ubu), Beatriz afirma que o quilombo não foi uma tentativa de rebelião pura e simples contra o sistema escravocrata.

“Foi também uma forma de organização política e social com implicações ideológicas muito fortes na vida do negro no passado e que se projeta, após a abolição, no século 20”, disse.

A FAVELA É UM QUILOMBO

Para Beatriz, as comunidades quilombolas sobrevivem, mas não na sua forma original e sim como uma tradição de vida do negro no Brasil. Por esse motivo, ela dizia que a favela no Rio de Janeiro é um quilombo.

“Quando Beatriz fala isso é porque fisicamente a favela é um quilombo. Se repararmos, o quilombo está sempre em uma colina, na subida”, diz Bethania.

“[Também] tem uma conexão maior, que Beatriz falava, que é cósmica em relação a ser quilombo. Tanto que daí ela diz que o quilombo está dentro de nós. Cada um de nós carrega um quilombo.”

Para a historiadora, a comunidade também era um lugar para se manter uma sociedade e cultivar os hábitos ancestrais.

Bethania diz que quando morou no Rio de Janeiro e deu aulas de balé nas comunidades do Chapéu Mangueira e da Babilônia, viveu a experiência de estar em um quilombo.

“Outro momento quilombo que eu vivo na minha vida é morando no Harlem e fazendo parte da companhia do Dance Theater of Harlem, que é um grupo criado a partir do conceito de quilombo dentro da dança.”

EU SOU ATLÂNTICA

Em 1989, a cineasta Raquel Gerber em parceria com Beatriz Nascimento lançou um documentário chamado “Ôrí” –palavra em iorubá que significa cabeça. A narração e o texto são da historiadora.

O filme trata sobre a relação entre Brasil e África e registra os movimentos negros dos anos 1970 e 1980. No documentário, Beatriz traz uma de suas frases mais emblemáticas: “eu sou Atlântica”. Ela diz isso para falar sobre os negros em diáspora, que foram retirados dos países africanos e atravessaram o mar atlântico nos navios negreiros.

“O que minha mãe quer dizer é que no momento em que a pessoa negra —vindo de um continente que nem tinha o nome de África ainda— atravessa o Atlântico, em uma travessia árdua, e se encontra com diferentes povos [no novo continente], há uma grande transformação. Eles nunca mais vão ser os mesmos”, diz Bethania.

Para ela, essa mistura resultou, por exemplo, na capoeira, nas religiões de matrizes africanas e também nas comunidades quilombolas.

“A finalidade dela no filme ‘Ôri’ era exatamente fazer com que possamos nos ver como quilombolas no momento de dançar, de se vestir, de fazer o cabelo, no momento da gente realmente viver”, afirma.

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