Carnaval afrocentrado

No dia em que entregou a chave da cidade ao Rei Momo, ritual que abre o carnaval carioca, o prefeito Eduardo Paes compartilhou nas redes sociais um conjunto de informações sobre a relevância econômica da festa. Do movimento financeiro de R$ 4 bilhões ao retorno de R$ 6 a cada real investido pelo município; do recolhimento de R$ 25,8 milhões em ISS, superior ao que rende o Réveillon, ao total de trabalhadores envolvidos (150 mil) — maior que a população inteira de 4.753 cidades brasileiras — e de turistas, 2,1 milhões em 2020, 300 mil na Marquês de Sapucaí. Os números reforçam a importância dessa cadeia produtiva, sofisticada, complexa, rica — infelizmente, de renda ainda concentrada. Mas, ainda que o carnaval não rendesse um centavo, não gerasse um emprego, teria de ser reverenciado e preservado, por essencial à identidade, à história, às melhores tradições culturais e religiosas do Rio de Janeiro, do Brasil.

Se importantes para a economia, os desfiles das escolas de samba são essenciais à política. Sambas, enredos, alegorias, adereços carregam significados, informam, educam, formam opinião, quando críticos, adesistas ou omissos. É tudo posicionamento. Após dois anos sem carnaval, em razão da tragédia sanitária da Covid-19, as agremiações retornam ao Sambódromo com histórias na medida dos novos tempos. De um lado, a fé, referência natural após um período de luto e doença; de outro, a representatividade. Nada trivial para um espetáculo que, duas décadas atrás, na celebração pelos 500 anos da invasão de Pindorama pelos portugueses, à época chamada de descobrimento do Brasil, todas as escolas do Grupo Especial desfilaram variações sobre esse tema.

Em 1988, centenário da Lei Áurea, a Vila Isabel venceu com “Kizomba, festa da raça”, e a Mangueira desfilou “100 anos de liberdade, realidade ou ilusão”. Um par de sambas entre os mais belos de todos os tempos. No ano seguinte, o mesmo em que Joãosinho Trinta e Laíla revolucionaram o carnaval com “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”, a Imperatriz Leopoldinense levou o título com enredo histórico sobre a proclamação da República. Foi também em 1989 que o Salgueiro cantou em versos e representou em alegoria “Linda Anastácia sem mordaça, o novo símbolo da raça”. Três décadas depois, o artista visual Yhuri Cruz apresentaria a obra “Monumento à Anastácia”, exibida na mostra “Carolina Maria de Jesus, um Brasil para brasileiros”, em 2021, no Instituto Moreira Salles (SP), e já reproduzida em livros didáticos país afora. A serigrafia estampa também a camiseta com que, meses atrás, a cantora e compositora Linn da Quebrada estreou como primeira travesti a integrar o elenco do reality show Big Brother Brasil.

O carnaval é capaz tanto de denunciar violações quanto de antecipar comportamento, ensinar. Neste 2022, chama a atenção a quantidade de enredos afrocentrados, na esteira das manifestações antirracistas que eclodiram nos EUA e tomaram parte do mundo, Brasil incluído, em 2020, após o assassinato por asfixia do negro George Floyd por um policial branco. Na Série Ouro, que atravessou a Sapucaí quarta e ontem, das 15 escolas, dez desfilaram gente ou histórias negras: Acadêmicos do Cubango (Chica Xavier), Porto da Pedra (Mãe Stella de Oxóssi), União da Ilha (A devoção a Nossa Senhora Aparecida), Lins Imperial (Mussum), Inocentes de Belford Roxo (A noite dos tambores silenciosos), Santa Cruz (Milton Gonçalves), Unidos de Padre Miguel (O orixá Iroko), Vigário Geral (A pequena África), Império da Tijuca (A escola de samba Quilombo) e Império Serrano (O capoeirista Besouro). A Acadêmicos do Sossego (Visões xamânicas) veio com enredo indígena, tal como amanhã a Unidos da Tijuca (Lenda do guaraná) no Grupo Especial.

Nos desfiles de hoje e sábado, de 12 agremiações, nove têm enredos afro-brasileiros. Mocidade Independente (Oxóssi) e Grande Rio (Exu) reverenciarão orixás. Mangueira (Cartola, Jamelão, Delegado), Salgueiro (Djalma Sabiá e a resistência negra), Beija-Flor (Cabana e intelectualidade afro), Paraíso do Tuiuti (ícones negros), Portela (Baobá) e Vila Isabel (Martinho da Vila) louvarão as próprias ancestralidade e potência. Como escreveu o antropólogo Mauro Cordeiro, professor na UFPI: “Das várias possibilidades analíticas que o conjunto dos enredos descortina, os protagonistas dos desfiles serão, majoritariamente, os sambistas que construíram as escolas e, de forma geral, a intelectualidade negra”.

A gente preta estará no centro do mais importante palco em pleno 22 de abril, aniversário da chegada dos colonizadores, e no dia de São Jorge, santo católico festejado como os orixás Ogum, no Rio, e Oxóssi, na Bahia. É ano do bicentenário da Independência, que não rendeu enredo a ninguém. Está dado o recado.

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