Carol Conká, a Karabá do BBB

A atuação daquela eleita vilã de reality que, em contexto de pandemia e ausência de novelas frescas, ocupou o vácuo e protagonizou o equivalente ao que seria uma final de novela das nove, mobilizou mais ódio e ação pública das massas, da minha comunidade e de famosos, do que os promotores do escárnio e da barbárie em Brasília. A audiência e o debate nas redes justificam os milionários patrocínios. E o gozo com o esquartejamento público de uma pessoa, “coincidentemente” preta, “coincidentemente” mulher, e “pelos defeitos dela, por culpa tão somente dela”, alimenta o fetiche racista coletivo.

Incapazes de subir ao trend topics uma hashtag de conteúdo obsceno tal como #VacinaParaTodesPeloSUS ou #AuxilioEmergencial600reais, a platéia brinda o país com a maior rejeição pública de todos os tempos.

Não. Não é a rejeição pública de Bolsonaro. Aliás, na arquibancada se juntam bolsonaristas e esquerdopatas, machistas e desconstruídos, intelectuais e analfabetos, todos com um ódio em comum. Tampouco se trata da rejeição da proposta de entrega das vacinas ao domínio privado dos ricos. E também não é rejeição à proposta de acabar com o piso mínimo de gastos com educação e saúde. NÃO! É a rejeição de alguém que se parece mais comigo, com minha irmã, com minha mãe, do que com aqueles que decidem nosso necro-destino. É a rejeição de alguém bem parecida com Karabá, a feiticeira má da história de Kiriku.

A lenda de Kiriku nos ensina tanto! Karabá é má. E todos a temem e a odeiam. Ela é má porque faz maldades. E faz mesmo. Você conhece alguém que nunca fez? Mas tem algo além disso. Ela vive com um espinho cravado num lugar inatingível da coluna vertebral. Espinho cravado pela violência do mundo, por homens maus. Ela não tem amigos para ajudá-la. Devolve sua dor em forma de ódio ao mundo. E Kiriku a liberta, arrancando com os dentes o espinho venenoso. Senso de comunidade, respeito, alteridade e tolerância, valores tão presentes em Kiriku e que andam tão em falta entre nós.

Mas vamos lá, eliminamos mais um, achando que não é com a gente.

De minha parte, só desejo que a vilã que o Brasil elegeu, que não é de novela e tem uma vida real, uma família, uma criança aqui fora, possa encontrar paz e um Kiriku em sua vida.

Douglas Belchior, professor e defensor de direitos humanos
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