Uma questão importante para nós, mulheres, é a questão da representação. Desde os primórdios do feminismo brigamos por e sobre representação, seja a representação política – quando lutamos por direito ao voto e a sermos representadas nas esferas do poder – seja na atualidade – quando discutimos de que representação estamos falando, pois utilizamos de imagens/ideias/conceitos quando queremos atribuir significados ao mundo em que vivemos, e elas muitas vezes soam por demais essencialistas.
Por Lia Mendes, do Las Abuelitas
Na nossa atualidade imagética, as mídias exercem papel fundamental nas formas de representações, e especificamente aqui, falarei do cinema.
O cinema, como toda arte, é representação, no entanto, o cinema tem a característica própria, a sua aproximação com a realidade. É nessa pretensa aproximação que ele se torna uma ferramenta útil para uma análise social, pois aponta um falar de si, da sociedade. Nesse falar de si, principalmente no cinema industrial norte-americano, ele intensifica estereótipos, criando representações que são tomadas como exemplos de comportamentos, e orquestra discursos ideológicos e imaginários coletivos. Partindo dessa afirmação, as feministas criam, durante a década de 1970, uma teoria denominada de Teoria Feminista do Cinema.
As primeiras discussões surgem nos festivais de cinema de mulheres que ocorreram em Nova York (EUA) e em Edimburgo (Escócia), em 1972, mas no início de 1970 já havia alguns textos falando do tema. O principal objetivo prático da teoria era a conscientização e a denúncia da imagem midiática da mulher, principalmente a negativa, pois as mulheres eram representadas em papéis marcados, como vampiras, prostitutas, interesseiras, mães, professoras e outros estereótipos. O machismo cinematográfico é mostrado tão multiforme como o real, pois envolve tanto a idealização de uma mulher moralmente superior quanto a sua inferiorização como castradora e assexuada, além da crítica ao machismo que até hoje impera na indústria cinematográfica.
Reelaborando o amalgama preexistente do marxismo, da semiótica e da psicanálise, as mulheres teóricas vão criar textos dentro da esfera do que era discutido no feminismo, e vão criticar principalmente o essencialismo ingênuo dos primeiros feminismos.
Umas das precursoras foi Laura Mulvey, que, no texto “Prazer Visual e Cinema Narrativo”, introduz os temas do fetichismo e do narcisismo. Ela escreve:
“A mulher, desta forma, só existe na cultura patriarcal como significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa ao seu lugar como portadora de significado, e não produtora de significado.”
Apesar de pioneiro, o seu texto seria criticado, pois colocava a espectadora como passiva, sem poder escolher a sua própria identificação. Em uma autocrítica, Mulvey escreve “Afethoughts on visual pleasure”, assumindo que não havia considerado o melodrama e a própria capacidade que a mulher possui de sabotar o olhar masculino.
Outra teórica importante foi Teresa de Laurentis, que, no texto “A tecnologia do gênero”, fala do cinema como umas das tecnologias de criação de subjetividades. Escreve que o foco das análises devia mudar para além das diferenças sexuais de gênero, devia incluir também a diferença entre mulheres. Robert Stam, ao escrever sobre De Laurentis, discorre:
“Tecnologias sociais complexas – instituições, representações, processos – modelam os indivíduos, destinando-lhe um papel, uma função e um lugar. Os homens e as mulheres são solicitados de maneiras diferentes por essas tecnologias, e têm investimentos conflitantes nos discursos e práticas da sexualidade.”
E. Ann Kaplan lança, na década de 1980, o livro “A mulher e o cinema – os dois lados da câmera”, que, também sob o foco psicanalítico, pondera sobre os filmes feitos e dirigidos por mulheres em um cinema denominado alternativo, que tentaria não apenas fugir dos estereótipos, como criar novos olhares. Ela escreve: “As mulheres foram forçadas a desenvolver uma semiótica do cinema que pudesse incluir uma teoria de referência, já que a opressão da formação social nos é impingida diariamente”.
Mas havia muita crítica com relação à Teoria Feminista do Cinema, principalmente por ser normativamente branca, não enxergando a experiência das mulheres negras e as limitações das análises ao lidar com filmes eurocolonialistas, que muitas vezes concedem o olhar apenas à protagonista branca.
Na esteira dessa discussão entram duas novas ferramentas para análise fílmica: o pós-estruturalismo e o pós-colonialismo. Esses temas ficarão como tópicos para os próximos artigos.
Concluindo este, lembro que o cinema se insere em nossas vidas não apenas como entretenimento ou arte; ele também é uma importante ferramenta para análise social e histórica, pois, como disse Marc Ferro:
“Entre cinema e história as interferências são múltiplas, por exemplo: na confluência entre a história que se faz e a história compreendida como relação do nosso tempo, como explicação do devir da sociedade”.
Bibliografia
De Lauretis, T. “A Tecnologia do Gênero”. in: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.), Tendências e Impasses – O Feminismo como crítica da cultura, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
Kaplan, A.E. A mulher e o cinema: os dois lados da câmara. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
Mulvey, L. “Prazer visual e cinema narrativo (1975)”. in: Xavier, I.(org.). A experiência do cinema. 4° ed. Rio de Janeiro: Edições Graal Embrafilme, 1983.
Stam, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.