Com ‘Oitentáculos’, Nei Lopes se consagra o griô da poesia brasileira

Este ano, títulos de doutor honoris causa homenagearam o autor de Irajá nas comemorações de seus 80 anos

“Oitentáculos” é o terceiro livro de poesias de Nei Lopes. Poderíamos dizer que é o livro comemorativo da passagem dos seus 80 anos, festejados em maio do ano passado. No entanto, como data comemorativa, o livro não está só.

Nei Lopes, nascido em 1942, foi agraciado no ano passado com dois títulos de doutor honoris causa, um pela UERJ, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e outro pela UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

No entanto, sua trajetória poética teve início antes, em 1966, pelas mãos do poeta Moacyr Félix e do crítico literário M. Cavalcanti Proença, que publicaram dois poemas de sua autoria na prestigiosa Revista Civilização Brasileira –os textos “Aboio” e “Gênese”.

Antes da estreia em livro propriamente dita, alguns textos seus foram analisados no estudo “Quatro Poetas Negros Brasileiros”, publicado na Revista de Estudos Afro-Asiáticos, em 1978, pelo brasilianista David Brookshaw, conhecido pesquisador da literatura negra brasileira e professor da Queen’s University, dos Estados Unidos. Brookshaw os retirou de um volume organizado sob o título “Feira Livre”, que Lopes jamais publicou.

Só então, depois da passagem de quase duas décadas, ou seja, em 1996, é que Lopes estrearia em livro, com o potente “Incursões Sobre a Pele”, acompanhado em seguida da publicação de “Poétnica”, certamente o seu melhor livro de poemas, editado em 2014.

Com “Oitentáculos”, Nei Lopes demonstra, como grande autor é, certa cristalização quanto ao refinamento de sua linguagem, um amadurecimento pautado em trabalho diuturno que se tornou feitio de padrão do seu fazer literário, marca que carrega desde os seus primeiros trabalhos, na poesia e na literatura.

E tudo ele nos apresenta de cara, e no caso de “Oitentáculos”, justo no poema que dá título e faz a abertura do livro: “Agarro-me aos tentáculos que me prendem à vida”, quando passa a falar de ancestralidade, música, dança, e do “vício de uma África mais sonhada que entendida” e do “amor pela mulher que me ama e que é por mim querida”.

Dividido em onze subtemas, com títulos que vão da metafísica à diáspora, atravessando a ancestralidade afro-indígena, com 69 poemas ao todo, “Oitentáculos” se entende como uma espécie de cosmologia da obra poética de Lopes no sentido de sua dimensão criativa –e estética.

Lopes, que também é consagrado o cantor e compositor, neste livro refaz seu percurso de vida através da poesia. E não deixa de mandar os seus recados, seja no fazer poético, seja na música, como em “Ouçam, Companheiros”, quando diz: “Quem segue as passadas/ dos antepassados/ não trilha caminhos/ equivocados”, ou em “Aqui Como Lá”, ao se escrever que “as moedas nos cofres/ tilintam hosanas e alegrias/ e os salões/ revestidos de sedas e cetins/ são o próprio poder”.

O cerne dos textos —a maioria inéditos, alguns compostos entre as décadas de 1960 e 1980, quando o autor tinha entre 18 e 38 anos— faz parte de uma revisita sentimental de Lopes ao seu precioso baú do tempo, como uma digressão à formação de seu pensamento crítico, como militante e agitador cultural, preso às ideias de reconstrução do passado com fulcro em um Brasil que ainda engatinhava na pauta de discussões sobre negritude e movimento negro, ao tempo do subúrbio de Irajá e arredores.

Com esses seus novos poemas, Lopes empresta à linguagem certa erudição talvez só compreendida na tradição de consagrados griôs suburbanos como ele, que emprega toda sabedoria, de raiz africana, para servir de portal que traduza a vida a partir da própria existência.

Certamente a síntese de tudo está no cerne do poema “Crença”. Nele, Lopes confessa: “O Deus da nossa aldeia/ não é uma pessoa/ muito menos um tirano/ um vigia de nós pobres humanos/ registrando nossos deveres e haveres/ pra brindar a uns/ presenteando prazeres/ e a outros, destinando dores/ dissabores”.

Não obstante, entre crenças e sabedorias, africanas ou não, Lopes vai atestando seu compromisso com a democracia e a poesia suburbanizada, construindo em versos aquilo que Lima Barreto fez brilhantemente em prosa, 20 anos antes de seu nascimento.

Em verdade, para Nei Lopes, o que vale é a vida e o saber de que cada coisa precisa estar no seu lugar. Estas, sem dúvida, são as memórias mais caras de um dos mais importantes menestréis da poesia brasileira.

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