Grupo foi criado para denunciar violações de direitos humanos sob governo Bolsonaro
por Thaiza Pauluze no Folha de São Paulo
O pontapé inicial da Comissão Arns, formada por 20 lideranças intelectuais para denunciar violações aos direitos humanos sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, vai ser cobrar respostas sobre a ação policial que deixou 15 mortos no morro do Fallet-Fogueteiro, no centro do Rio, e criticar o pacote anticrime do ministro da Justiça Sergio Moro, chamado de licença para matar.
“Foi uma chacina, um massacre. Sete homens sofreram tortura física e morreram dentro de uma casa”, afirmou o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, sobre a operação, no início de fevereiro. “É a repetição do que já ocorreu e prenúncio do que pode vir a ocorrer com mais intensidade.”
Batizada em homenagem a dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo morto em 2016, a comissão foi criada por por um grupo de ex-ministros, intelectuais, advogados, acadêmicos e jornalistas e lançada em 20 de fevereiro. São personalidades e ativistas com longa história de militância na área, que dizem existir um sentimento crescente de ódio, intolerância e discriminação no país.
O Ministério Público já investiga a ação da PM do Rio. Os policiais afirmaram ter reagido a um ataque, mas parentes dos mortos dizem que eles já haviam se rendido e acusam os agentes de execução.
Na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), o deputado Rodrigo Amorim (PSL) fez uma homenagem aos agentes envolvidos, o que permitiu identificá-los. O parlamentar ficou conhecido durante a campanha eleitoral por quebrar a placa com o nome da vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada em março do ano passado.
A comissão anunciou nesta terça-feira (9) na capital paulista que vai se reunir com a promotoria, a divisão carioca da OAB, a defensoria pública e a comissão de direitos humanos da Alerj, além de buscar contato com as famílias das vítimas.
Segundo a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, existe um clima que estimula a violência policial. “Ajudaria muito se os governos não laureassem aqueles que violaram direitos”, disse.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), condecorou nesta terça-feirano Palácio Bandeirantes os agentes que mataram 11 assaltantes em Guararema, na Grande SP, no início de abril. “Ao reagir e colocar em risco a vida dos policiais, quem vai para o cemitério é bandido”, disse Doria.
O advogado Belisário Santos Júnior, ex-secretário de Justiça de São Paulo, também lembrou do caso deste domingo no Rio em que militares do Exército fuzilaram um carro com uma família. Os mais de 80 tiros mataram um músico.
“Os policiais e militares que cuidam da segurança não podem ser tratados com ideologia. Eles precisam de experiência, inteligência, comando, não de discurso”, afirmou Santos Júnior.
Logo após o caso no Fallet, o governador Wilson Witzel (PSC) elogiou a operação e disse que os policiais agiram “para defender o cidadão de bem”. O ex-juiz federal afirma, desde a campanha eleitoral, autorizar o “abate” de criminosos.
Sobre a ação do Exército, Witzel disse na noite desta segunda-feira (8) que não pode fazer juízo de valor. “Não me cabe fazer juízo de valor e nem muito menos tecer qualquer crítica a respeito dos fatos. É preciso que a auditoria militar e a Justiça Militar e o Exército faça as devidas investigações”, afirmou.
Para a comissão, as operações já seguem a doutrina do pacote anticrime de Moro, que está na Câmara dos Deputados. O projeto de lei amplia o conceito de legítima defesa de agentes do Estado ao classificar assim os casos de mortes ocorridas em cenários de “escusável medo, surpresa, ou violenta emoção”. “Agora vai se poder matar nas situações mais esdrúxulas”, diz Mariz de Oliveira.
Um parecer sobre o projeto será encaminhado ao Congresso. Para o presidente da comissão e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo Sérgio Pinheiro, retrocessos não são medidos em tweets, mas nas medidas legais propostas nesses primeiros 100 dias de governo.
“O projeto do Moro é um liberou geral, uma licença para matar mesmo, embora o ministro não goste que chame assim”, afirmou ele que criticou ainda a flexibilização de posse armas no país, decretada por Bolsonaro em janeiro.
“Quatro armas para cada cidadão, num país que tem 62 mil homicídios por ano. Então, queremos melhorar esse recorde”, ironizou Pinheiro, que foi também membro da Comissão Nacional da Verdade. “A celebração da morte não é política de segurança.”
TERRAS INDÍGENAS
A comissão também vê ameaças aos povos indígenas no governo Bolsonaro. Por isso, em outra frente, eles vão contestar o plano de construir um linhão de energia na terra indígena Uaimiri-Atroari, em Roraima.
“Há sinais bastante preocupantes. As reservas vêm sendo alvo de críticas de diferentes setores da sociedade e dos governos. Um discurso passadista e sem fundamento que recoloca o índio como entrave ao desenvolvimento nacional”, afirmou a jornalista Laura Greenhalgh.
Em fevereiro, o presidente assinou um decreto para transformar o Linhão de Tucuruí em projeto de “interesse da política de defesa nacional”, já que hoje algumas cidades da região dependem de energia elétrica vinda da Venezuela. Isso abriu caminho para que a obra seja iniciada sem a permissão dos uaimiri-atroari.
“O linhão vai se materializar como um corredor de antes colossais cruzando a terra indígena, com impactos evidentes sobre as comunidades”, diz Greenhalgh.
Durante a ditadura militar, a etnia foi ameaçada de extinção pela abertura da BR-174 e a construção da hidrelétrica de Balbina. Sua população foi reduzida de 3.000 para 332 pessoas.
A comissão vai solicitar audiências com a procuradora-geral da República, Raquel Dogde, o Supremo Tribunal Federal, a Funai e com o escritório brasileiro da OIT (Organização Internacional do Trabalho) para que haja uma consulta prévia aos uaimiri-atroari antes da obra.
“O projeto foi politizado e querem fazer a toque de caixa. Mas esse povo pede para ser ouvido, está cobrando respeito”, diz Greenhalgh.
Pinheiro, no entanto, diz que a Comissão Arns não faz oposição ao governo. “A centralidade é defender a manutenção de uma política de direitos humanos que prevaleceu nos 30 anos depois da Constituição de 1988. E outro braço é impedir o retrocesso. O Estado é um interlocutor natural”, afirmou.