O negro traficante com cara de mau e o branco usuário de drogas. Um estereótipo comum na sociedade brasileira, que foi incorporado pelo curso de atualização do programa Delegacia Legal, da Polícia Civil, chocou alguns especialistas ouvidos pelo EXTRA e o próprio subchefe da instituição, delegado Ricardo Martins (clique aqui para comentar no Casos de Polícia). O quadro, que apresenta ainda a corporação como órgão repressor e mostra as drogas nessa relação, é usado como lição no módulo sobre tráfico de entorpecentes. Criado pelo Grupo Executivo, o curso é obrigatório para quem quiser trabalhar numa delegacia legal.
É um racismo expresso
– É um racismo expresso. Lamentável que isso parta de um órgão público, que tem o dever de estimular o oposto. Vivemos num país misturado, onde não poderia haver esse tipo de preconceito, social e racial – disse o advogado Michel Assef, explicando quais são as prováveis conseqüências:
– Estimula o profissional da segurança pública a agir com truculência nos menos favorecidos, porque o negro e o mestiço estão nas comunidades mais pobres. Acho que o Ministério Público deveria atuar, pedindo punição.
Achei chocante e inaceitável
Apesar de elogiar o desenvolvimento da polícia desde a criação da Delegacia Legal, a cientista social Sílvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, vê o quadro como um retrocesso. Para a cientista, ele representa um preconceito que a sociedade está superando.
– Achei chocante e inaceitável. Estou perplexa como a Polícia Civil ainda não percebeu que produzir este tipo de estereótipo é ruim para a própria polícia. É uma imagem totalmente acrítica, impensada, quase automática dos estereótipos que ainda estão muito presentes na sociedade brasileira – disse.
Entre os traficantes mais procurados, muitos são brancos. Antônio José de Souza, o Tota, do Complexo do Alemão, que teria morrido semana passada, é um deles. Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho, do Morro do Dendê, Pitbull da Mangueira, e FB, da Vila Cruzeiro, são outros que não seguem o estereótipo apresentado. Em compensação, também é cada vez mais comum jovens ricos envolvidos com tráfico.
Suspeito padrão
A antropóloga Ana Paula Miranda, que foi presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP), também elogiou a criação do programa Delegacia Legal, mas classificou como “terrível” o quadro usado em um dos módulos do curso. Segundo ela, o pior problema é o policial achar que apenas esses três personagens – polícia, traficante e usuário – têm relação com a venda de drogas.
Não estimula o preconceito, mas reproduz o senso comum
– Esse quadro mostra apenas os traficantes de drogas. Ele esquece de falar sobre as grandes redes que estão por trás, comandando tudo. Não cita a fonte das drogas – frisou a antropóloga.
Para Ana Paula, a imagem divulgada no curso serve apenas para reforçar o preconceito racial e social que o policial já carrega.
– A polícia deveria ter um cuidado maior com o produto que está sendo apresentado. Essa imagem reproduz um senso comum na população, mas não acrescenta em nada para as investigações – disse.
Segundo a cientista Silvia Ramos, o quadro serve apenas para que os policiais continuem pensando sempre que o negro é o traficante.
– Não estimula o preconceito, mas reproduz o senso comum. E o policial deveria ser o primeiro a sair do senso comum, escapar do elemento suspeito cor padrão. Senão, ele estará reproduzindo o que a sociedade tem como conservadorismo – garante.
Subchefe: ‘Curso precisa de atualização’
O subchefe da Polícia Civil, delegado Ricardo Martins, disse ontem que o curso precisa de algumas atualizações. Segundo o delegado, que ainda nem tinha visto o quadro da lição, integrantes do grupo executivo devem fazer um novo estudo do curso ainda este ano. O treinamento para as delegacias legais foi criado na administração passada. Ele já tem seis anos e constantemente novos módulos são lançados no sistema interno da polícia.
Os policiais negros vão para cima dos negros
– É algo que pode ter passado desapercebido. Até porque, as coisas hoje estão se invertendo. Minha primeira atitude amanhã (hoje) será ver o que aconteceu. Seria melhor não usarmos imagem nenhuma – disse ele.
O subchefe de Polícia não falou se os cursos em andamento continuarão.
Para o advogado criminalista Nélio Andrade, o quadro representa algo que não existe mais na sociedade.
– É uma tremenda discriminação. Por que o negro aparece de forma diferente? O grande financiador hoje não é negro, é o traficante brancão, que compra a droga. O negro está nessa ponta como o vendedor. É a sardinha, porque o grande tubarão quase não aparece? – questionou o advogado, que costuma tocar no assunto quando faz palestras:
– Os policiais negros vão para cima dos negros. Se passar um negro em um carro importado, eles são parados. Isso é discriminação – disse Nélio Andrade.
Fonte: Globo