Rosângela Santos Lopes foi a primeira pessoa de sua família a cursar uma faculdade. Mas essa não é uma experiência da qual ela tem apenas lembranças boas. Ela conta que, durante a graduação de Direito, se sentia muito “sufocada” por um ambiente “produzido por brancos para brancos”. Sentia-se diminuída, uma estranha, por vezes uma fraude. O que fez com que, ao final do curso, nem pensasse em publicar o seu trabalho de conclusão de curso (TCC).
Por Luís Eduardo Gomes, do Sul 21
Foi um ambiente em que também conviveu com o racismo, em diversas ocasiões. Ela relata uma delas: “Eu tive um professor de Metodologia Científica que nos pediu para escrever um trabalho sobre um livro dele, e eu não tinha dinheiro para comprar. Na época, eu era magrinha, tinha um corpo violão, e ele olhou para mim e disse que eu não precisava pagar financeiramente, que eu teria outros meios. Ali eu vi que não era o espaço para mim, que eu não queria ser vista daquela forma”.
Neste sábado (5), ela subirá ao palco do Salão de Atos da UFRGS, às 16h, para uma nova formatura. Mas, dessa vez, será diferente. Ao lado dela, estarão mais de 70 mulheres, todas negras, que participaram ao longo de 2019 das duas turmas presenciais e de outra na modalidade EAD (Ensino à Distância) do curso “Dandaras — Construindo o Pensamento Crítico e Promovendo Formação Política com Mulheres Negras no RS”. Dandaras uma referência à guerreira negra da luta contra a escravidão no período colonial.
Coordenadora do Instituto Akanni e idealizadora do Dandaras, Reginete Bispo diz que o curso surgiu de uma ideia que ela já vinha alimentando há muitos anos como militante no movimento negro, que era a necessidade de construção de um projeto político para o País que partisse da perspectiva do povo negro. “A gente passou nesses últimos 30 anos numa experiência de democracia e a gente está do jeito que está. Mesmo a democracia nos nossos governos populares e democráticos não conseguiu dar à população negra o protagonismo político. Além do racismo, que atua para dividir e invisibilizar a nossa luta, isso ocorre também por falta de uma maior articulação nossa”, diz.
É buscando ocupar esse espaço de formação política de mulheres negras que se insere o curso Dandaras. “Não tem como alterar uma realidade tão dura como a realidade do povo negro sem estar dentro dessa estrutura, sem uma participação efetiva nos espaços de decisão e poder. Agora, com essa crise profunda, em que o fascismo elegeu os povos negros e indígenas como responsáveis pelo que eles consideram como atraso, pelos gastos públicos, não tem como a gente ficar sem iniciar esse processo de articulação política do povo negro. E a forma de fazer isso é pela formação, mas não pode ser uma formação eurocêntrica que carrega uma forma de pensar e fazer o mundo. O Dandaras é inovador e ousado por isso. É um curso feito para mulheres negras, com mulheres negras, onde a gente resgata toda a produção intelectual de autores negros”, diz Reginete.
Ela ainda diz que, além de transmissão de conhecimento, o curso Dandaras tem como objetivo incentivar mulheres negras a se constituírem em lideranças para disputar espaços de poder. Ela vislumbra que algumas alunas possam aparecer como candidatas já nas próximas eleições municipais, mas diz que deseja vê-las ocupando espaços não apenas dentro de partidos políticos, mas também dentro das organizações em que estejam inseridas.
Ministrado aos sábados a cada 15 dias, com carga horária de 60 horas, o Dandaras foi produzido em parceira com a Escola de Enfermagem da UFRGS, da qual é um curso de extensão sob co-coordenação da professora Fernanda Bairros. Ao todo, nove professores estiveram envolvidos com as aulas das duas turmas, sendo sete mulheres e dois homens, trabalhando conteúdos em seis eixos: Cultura, Corpo e Identidades; Gênero e Feminismo Negro; História da África e Brasil Colônia; Marcos Legais das Políticas e Enfrentamento ao Racismo; Economia, Saúde e Educação; e Conjuntura, Boas Práticas e Apresentação do Produto.
Rosângela diz que fazer o curso Dandaras foi uma experiência de empoderamento. Se antes desconfiava de sua capacidade, agora quer recuperar o tempo perdido. Está retomando a pesquisa que fez na graduação sobre a violência doméstica e mulheres negras. Publicará um artigo em breve. Também se sente mais segura para dar entrevistas, participar de cursos, de mesas de debates, etc. “Porque eu consigo reconhecer em mim o meu potencial. Hoje, eu posso olhar olho no olho de qualquer pessoa, porque eu reconheço a minha potência, que é diferente, mas é existente”.
Ela classifica o Dandaras como um “espaço de fala e de escuta” muito qualificado e avalia que a diferença de um curso voltado apenas para mulheres negras é que, em um ambiente como esse, não se faz necessário se explicar para ninguém. “Mulher negra entre mulher negra não precisa explicar. Não precisava ter medo. Ali foi uma fonte de potência”, diz.
Rosângela, que há 20 anos trabalha como promotora legal pela ONG Themis ajudando outras mulheres, celebra ainda o fato de que o Dandaras reuniu mulheres negras com diversas formações e experiências de vida diferentes, de bacharéis em Direito a psicólogas, de diaristas a donas de casa, sendo que todas tiveram espaço para falar e escutarem, independente da formação.
“Na aula de apresentação, teve uma senhora que fez o curso junto com a filha e estava muito constrangida em ouvir os currículos de pessoas que tiveram oportunidade de ter uma graduação. Ela ficou muito constrangida porque não teve essa possibilidade e achou que ia ficar excluída. Mas, não, o tempo todo ela foi incluída. E a fala dela foi muito empoderada porque, dentro daquele espaço, não existia diferença”, diz.
A bacharel em História e trançadeira, especialista em penteados afros, Carmen Marilu Silva dos Santos, 59 anos, foi instigada a participar do curso por uma amiga de mais de quatro anos. Militantes de “longa data”, elas imaginavam que o curso seria mais voltado para mulheres jovens, mas tinham interesse em compreender como a questão do racismo estava sendo trabalhada com a juventude.
Após concluir o curso, ela avalia que o seu grande ponto positivo é justamente conseguir reunir diversos tipos de mulheres. “A partir do momento que tu tem jovens, tem meia idade, meninas que estão estudando, outras que já conseguiram ter uma formação, isso dá chance de nós, enquanto mulheres, perceber onde estão pontos que temos que dar mais atenção”, afirma. Carmen
Empatia e inclusão
A ativista e modelo Josiane França, que ficou cega há 12 anos, trouxe para o curso uma experiência diferente da maioria das outras alunas, a de uma pessoa com deficiência. “Teve vários momentos no curso que vão ficar marcados na minha vida de entendimento, não só das professoras e professores, mas das colegas, de que eu sou cega e que era preciso sim descrever as imagens para mim. Às vezes, alguém esquecia de escrever e uma colega gritava lá do fundo: ‘Tem que descrever a imagem para a Josi’. Isso é de fato a inclusão. Todo mundo tem falado ‘vamos incluir’, mas não sabem como. Ali aconteceu”, diz.
Josiane salienta que, dentro desse grupo social marginalizado, que é o das mulheres negras, existem muitas mulheres que sofrem outros níveis de marginalização e que tem ainda menos espaço para se manifestarem, e o Dandaras se configurou em um espaço acessível também para essas mulheres. Além dela própria, o curso também teve uma aluna cadeirante. “Existem mulheres negras com deficiência que não aparecem muito porque estão isoladas dentro de casa, moram em lugares inacessíveis, não conseguem sair para participar da sociedade, não conseguem sair para estudar e muito menos para trabalhar. Para nós mulheres com deficiência, é um reconhecimento conquistado com esse convite da Akanni”, diz.
Ela afirma que, em nenhum momento, se sentiu diminuída pelas colegas, pelo contrário. “Na penúltima aula, nós apresentamos um trabalho de conclusão. Uma colega me convidou para participar de uma oficina de bonecas negras e eu topei. Em nenhum momento ela veio com capacitismo. Ela disse: ‘Vou convidar a Josi e a Josi vai fazer uma boneca”. E eu fiz. Fiz uma boneca negra, com turbante vermelho e roupa laranja”, conta.
Para Rosângela, uma das maiores potências do curso Dandaras é justamente a possibilidade de transformar a vida de mulheres negras. Ela conta que o seu trabalho de conclusão consistiu na ideia de montar um grupo de apoio para ajudar a desenvolver a fala de mulheres. “Nós sentimos que muitas ali tinham sido caladas e silenciadas por muito tempo, desde a infância. A gente entende que potencializar a fala é muito importante”, afirma.
A jurista e doutoranda Winnie Bueno, que ministrou aulas sobre feminismo negro no Dandaras, avalia que o curso trouxe a possibilidade de ser um espaço seguro de compartilhamento de experiências. “Isso é muito importante, ter uma sala de aula só de meninas negras, só de mulheres negras, proporciona a constituição de um espaço em que essas mulheres possam organizar processo de constituição de autonomia. Foi muito prazeroso estar aprendendo, trocando com essas mulheres”, diz.
Carmen diz que um momento muito marcante do curso ocorreu quando sua turma compartilhou experiências pregressas de racismo. “Esse momento se tornou tenso no sentido de que trouxe as emoções das dores. Mas a gente conseguiu, a partir de falas trêmulas, se abraçar. Isso foi muito forte”, diz, acrescentando ainda que foi muito perceptível a transformação de muitas colegas ao longo do curso. “Mesmo aquelas que eram mais tímidas foram soltando a voz, rompendo com o silêncio”.
A trançadeira diz que chegou ao final do curso com a compreensão de que é preciso buscar a unidade de luta entre todas. “Nós temos histórias comuns de sofrimento, de batalhas, e nós podemos também servir como referência umas para as outras”, diz. “Tem aquela experiência que às vezes tu toma como individual, mas é fruto de uma ordem maior que atinge a todas nós. Nós passamos a nos enxergar em termos de grupo. Essa perspectiva que eu entendo fundamental do curso”, diz.
Josi diz que o curso não propiciou a ela apenas uma formação, mas uma relação com as colegas que vai levar para toda a vida. “Foi criado um vínculo entre nós, uma empatia, essa palavra que é tão falada, mas muitas mulheres falam e não sabem o significado real dela. Lá, elas tiveram isso, não só comigo, como com outras colegas também”, diz.
Reginete explica que, ao todo, mais de 110 alunas já concluíram o curso Dandaras, 70 na modalidade presencial e 40 na EAD. Como muitas que fizeram o curso à distância não são de Porto Alegre, ela estima que pouco mais de 70 estarão presentes na formatura deste sábado. Formatura, aliás, que não será algo comum. Além da entrega dos certificados, haverá uma verdadeira celebração da ancestralidade, das tradições e de mulheres negras que foram pioneiras em seus campos no Rio Grande do Sul.
Ela conta que a cerimônia será aberta com um momento político, que depois será sucedido por uma apresentação de artistas negros, de uma saudação de ialorixás, de uma homenagem a mulheres negras que “ousaram enfrentar as estruturas do Estado”, da entrega de certificados e, no encerramento, por uma apresentação das alunas e de imigrantes haitianas.
Uma vez concluída essa celebração, a ideia de Reginete é continuar construindo esse movimento. Ela saúda o fato de que as próprias alunas já estão se organizando em redes e que seis delas já irão concorrer a vagas no Conselho Tutelar neste domingo (6). Ela diz que ainda não há definições sobre novas turmas, mas vislumbra que certamente serão lançadas em 2020. “O que ficou latente é que todas, inclusive nós da coordenação, sentiram a potência de estar juntas pensando política. É uma necessidade de continuar se organizando”, diz.