Democracia feminista

à generosidade de cada feminista que se reuniu no dia 2 de junho para pensar uma São Paulo feminista e a tod@s as que quiseram ir, e não puderam.

Por Marcia Tiburi na Revista Cult

Pessoas que, em suas vidas, praticam a política do feminino que é o feminismo, se reuniram no dia 2 de junho em São Paulo justamente para pensar essa política. E para conversar sobre o que pode significar uma “partidA” feminista.

Estamos chamando de #partidA essa ideia de partido. É uma fantasia, um sonho. Poderá ser uma realidade. Mas é desde já, sobretudo, um encontro. Conversamos para saber o que um encontro como esse pode ser. E o que podemos produzir entre nós a partir dele.  Eu defendo a ideia da #partidA porque considero uma inovação bastante inusitada. Essa inovação pode fazer bem ao nosso momento histórico. Penso na #partidA como um movimento que funcione como partido. Ora, o feminismo sempre foi um movimento. Agora ele pode organizar-se para governar.

Temos um ponto de #partidA e estamos seguindo.

Feminismo como política da escuta

Um encontro feminista é dialógico. Em uma cultura, em uma sociedade, em que o diálogo parece impossível, nós o realizamos. Como filósofa, lembrei do medo que Platão tinha das mulheres. De como elas não podiam, segundo seu velho ponto de vista patriarcal, participar dos diálogos. E lembrei de um velho sonho teórico: saber como conversavam Safo e suas amigas.

O feminismo é dialógico. Daí que as pessoas feministas não pensem do mesmo modo, mas estejam juntas na mesma causa. E estão juntas porque podem dialogar. O feminismo é a forma própria e verdadeira do diálogo, porque é a dança do pensamento que se dá entre quem deixa preconceitos para trás e se lança na experiência com o outro. Essa experiência com o outro é, ela mesma, uma experiência de descoberta.

Os caminhos do feminismo nunca nos levaram ao mesmo lugar e nunca foram caminhos solitários. Isso só foi possível porque as mulheres souberam conversar com profundidade, mas sobretudo porque souberam ouvir. As feministas sabem ouvir e, porque fazem a política do feminino, elas sabem também falar. A voz de uma feminista não se confunde com o poder, ela é potência que reverbera, que abre espaço e tempo, que pergunta e pede resposta. Ao falar, uma feminista abraça a outra. Uma feminista nunca está só.

Uma política da escuta. É isso que é o feminismo. É isso o que o feminismo faz com a política como um todo. As mulheres feministas estão sempre juntas escutando umas às outras, dando lugar para que a outra fale. As feministas provam há tempos que conversar com escuta e cuidado não é nada difícil. Conversar só é difícil para quem se vende à brutalização da cultura patriarcal. Para quem não se abre para o outro, não escuta e não se preocupa em expressar aquilo que realmente pensa.

O feminismo sempre foi um convite a conversar e dialogar. Mas também, e por isso mesmo, um convite a seguir juntas conversando e dialogando. Daí o ponto de #partidA.

Aonde iremos chegar? Isso a gente decide juntas.

Alegria política X Anti-política do ressentimento

Um encontro feminista é sempre um bom encontro, no sentido spinoziano. Um encontro do afeto criativo que, fazendo pensar, modifica o agir. Se não é assim, então não é um encontro feminista.

Hoje em dia, na autocrítica do feminismo, aprendemos a perceber traços de ressentimento em certas palavras e ações, mas o ressentimento é um resquício do patriarcado que construiu a política tradicional. O feminismo nunca foi tradicional, então ele não faz política tradicional.

No feminismo que é a política do feminino, o ressentimento foi superado, ainda que as feministas tivessem todos os motivos do mundo para sustentá-lo. No entanto, o afeto que rege o feminismo é a alegria. Portanto, o fascismo, tanto quanto aquele microfascismo que é o “narcisimo das pequenas diferenças”, está completamente superado na ético-política feminista. As feministas são aquelas mulheres que politizaram os afetos femininos, mas também os sofrimentos conhecidos na história das mulheres (ela mesma uma história que apenas pode vir à tona porque feministas decidiram um dia cuidar dessa memória). Mas fizeram isso em nome de um mundo diferente em que o rancor machista que violenta e destrói fosse superado. É contra isso que a gente continua lutando.

O feminismo é uma ético-política, talvez a única que faça diferença, porque apenas o feminismo consegue integrar a singularidade pessoal, o ser de cada pessoa, ao ser genérico, ao ser político, do qual estamos esquecidos.

No auge do sistema econômico e político da exploração do corpo e do tempo, o que ouvimos no cotidiano perturbado pela tendência autoritária, são discursos que servem para combater a política. Tais discursos visam acabar com o ser político que surge porque somos seres de relação, porque somos capazes de conversar e dialogar. O que chamo de ser político? Esse ser que em nós deseja uma democracia real e não desiste dela. Eu diria que todos os que pensam assim são feministas. Uma democracia que não seja feminista é fachada de democracia. A democracia é feminista ou não é democracia.

E por que estamos esquecidos de nosso ser político? Por que deixamos a democracia tornar-se acobertamento de processos econômicos anti-políticos? Ora, somos diariamente massacrados em nosso ser político. Os meios de comunicação, braço de plástico do autoritarismo do qual depende o sistema econômico, prega em nome do medo, do consumo, da produtividade vazia, do trabalho escravizante e sem sentido. Planta o ódio fascista que nada mais é do que o fim das relações entre as pessoas para que elas sirvam mansamente ao sistema que as aniquila.

Muitos se entregam à política do ressentimento que de política não tem nada. Ela é anti-política. É cheia de ódio, porque este ódio é o legado do patriarcado como sistema de exploração, o patriarcado que é a forma de gênero do sistema capitalista. A relação entre exploração de gênero e exploração econômica é evidente. A exploração da raça não deve ser esquecida. Por isso, sabemos que todo feminismo consistente tem no feminismo negro a sua fundamentação mais séria.

O desafio feminista desse momento é elevar a projeto de sociedade o diálogo feminista. Ele é modelo de democracia.

+ sobre o tema

Djamila Ribeiro lança livro “O que é Lugar de Fala” nessa terça-feira em São Paulo

Nessa terça feira, 14, será lançado em São Paulo,...

Aborto legal e seguro: cada vez mais difícil no Brasil

Recentemente, o Governo Federal, por meio da Ministra da...

Juíza viraliza nas redes ao citar em sentença a poesia “A Vida É Loka” de Sergio Vaz

“Esses dias tinha um moleque na quebrada com uma arma...

Mapa interativo centraliza dados sobre violência de gênero no Brasil

Plataforma permite cruzamento de informações relacionadas a gênero, raça...

para lembrar

Artigo: A única saída possível: justiça para Marielle

Foi no dia 14 de março de 2018, há...

Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexismo

A discussão sobre interseccionalidade tem ocupado um espaço importante...

Kalungas acreditam na educação para salvar meninas da violência sexual

Para a comunidade, a solução virá de dentro e...

Escândalo de doping pode consagrar africana que teve que provar ser mulher

A sul-africana Caster Semenya, 24, pode herdar duas medalhas...
spot_imgspot_img

Beatriz Nascimento, mulher negra atlântica, deixou legado de muitas lutas

Em "Uma História Feita por Mãos Negras" (ed.Zahar, organização Alex Ratts), Beatriz Nascimento partilha suas angústias como mulher negra, militante e ativista, numa sociedade onde o racismo, de...

Ausência de mulheres negras é desafio para ciência

Imagine um mundo com mais mulheres cientistas. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), isso é fundamental para alcançar a igualdade de gênero e...

Pesquisa revela como racismo e transfobia afetam população trans negra

Uma pesquisa inovadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), intitulada "Travestilidades Negras", lança, nesta sexta-feira, 7/2, luz sobre as...
-+=