O Brasil não gosta de admitir, mas é uma nação altamente pautada na supremacia branca. Todos os caminhos levam a essa constatação: os meios de comunicação, as relações sociais, a atuação da polícia, a representatividade política, a afetividade, as reações familiares, a educação, a saúde, a cultura, etc. Todos os assuntos que estruturam nosso meio social estão absurdamente manchados pela sanha animalesca do racismo (mal enrustido) que permeia nossos espaços de convivência e permanência.
Por Joice Berth Do Justificando
Pessoas brancas, em 2015, ainda se negam a entender o racismo como elemento político estruturado por ações culturais e que refletem no meio social. Se negam a (re)conhecer seus mecanismos de garantia de privilégios e sua força criadora de riquezas cunhada pela exploração e segregação racial quase passiva. Digo quase, porque o genocídio da população negra e não branca promovido pelo Estado brasileiro só não é reconhecido por quem está vivendo no miolo das grandes cidades. Para quem vive nas bordas ele grita alto e diariamente.
Isso é humano o suficiente para merecer um dia a ser celebrado?
O dia da consciência humana que tapa os olhos e os ouvidos para as consequências de suas pequenas atitudes anti-negros e que somadas causam um estrago histórico em que a população negra sobrevive? Não me parece conveniente e se você que me lê nesse momento é dotado de algum bom senso, há de concordar comigo que isso seria no mínimo contraditório.
O dia da consciência de humanos altamente seletivos, que não choram por Cláudia e Amarildo, mas Je Suis Charlie. É humano a acalorada discussão sobre cotas nas universidades, em um esforço histérico e pueril em não entender todo o processo a fim de desqualificá-lo, mesmo depois de doze anos de implantação e inúmeras discussões a respeito? Creio que não.
Vamos fazer um recorte na estrutura de ensino, caótica e conservadora, que há muito tempo deixou de formar cidadãos para abastecer a massa acrítica em que se tornou o povo brasileiro. Toda pessoa negra ao longo de sua permanência na escola é bombardeada com informações históricas do povo que escravizou seus antepassados. Estudamos personagens heroicos que nem ao menos contribuíram de forma eficiente com o desenvolvimento próspero do Brasil, que pura e simplesmente usurparam esse território e as riquezas naturais que ele apresentava e ainda explorou, além de negros, povos nativos, roubando suas terras e interferindo em sua cultura. Aprendemos os seus feitos mascarados e romantizados, as táticas de escravização que utilizaram e sobre seu colonialismo covarde que deixou consequências que hoje ainda sofremos.
Somos obrigados a estudar nossos algozes e tratá-los como salvadores, prestando homenagens, fazendo pesquisas e aturando suas trajetórias forjadas e caricatas registradas nos livros de história. Por longos 12 a 15 anos, tempo do ciclo escolar básico que antecede a entrada na universidade. E não é só isso. Quando sentamos em frente à televisão, ainda o veículo de entretenimento mais barato e de maior alcance, somos bombardeados com uma profusão de estórias e opiniões brancas sobre o mundo. Em seus diversos programas, tanto na televisão aberta quanto paga, a quantidade de pessoas brancas convence qualquer desavisado de que estamos em um país no mínimo escandinavo, com um desfile bonito de olhos claros e peles bem alvas, devidamente representando os melhores produtos, as profissões mais valorizadas e as maravilhas das quais desfrutam os privilegiados e bem nascidos brancos. Seria essa a humanidade que nunca na história questionou essa negação da cara de seu povo através da exclusão midiática e da sub-representação do povo negro, merecedora de louros e homenagens? Creio que não.
Quando abrimos jornais e revistas a coisa não muda um centímetro. Especialistas, doutores, mestres, intelectuais, artistas e até pobres e mendigos são na sua maioria esmagadora representações brancas.
Mas existem as exceções, aqueles momentos “abençoados” em que pessoas brancas deixam fluir a bondade que abunda em seus corações caucasianos e nos dão um pequeno espaço. Nas novelas de época que retratam o período colonial e que o público tanto ama. Daí sim, festival de negritude. Negro apanhando daqui, sendo torturado dali, escravas sendo estupradas, mestiços caçando negros, etc. Tudo com uma boa dose de romantização, de modos que não fique bem claro o drama que é viajar pelos mares a bordo de navios negreiros, sujos porões/gaiolas infectados de doenças e ódio dos exploradores ao povo sequestrado (e qual teria sido a origem desse ódio? Eis um dos mistérios reais da humanidade).
Mas há uma Lei que OBRIGA o ensino da cultura africana no ensino, porque alguém lembra que somos uma nação miscigenada com influências afro-indígenas também. Mas que triste isso, precisar de uma Lei que reconheça essa influência, porque os amantes da ancestralidade europeia que aqui é exaltada com orgulho em sobrenomes de fácil identificação, não sabem reconhecer e valorizar o nosso bom e velho pretuguês (como diria Lélia Gonzáles sobre a predominância da influência africana na formação do nosso idioma) nem o nosso tupi-guarani, bravamente repassado nas aldeias indígenas.
Mas se entre um capisco e um wie geht es dir, o povo brasileiro se recusa a falar em racismo, curiosamente esse assunto vem com toda força no mês da Consciência Negra, quando um coro firme e imponente se faz ouvir através do infeliz, para não dizer vergonhoso, questionamento:
Mas e o dia da Consciência Branca?
No filme Selma de Ava DuVernay, que mostra um importante recorte na vida do grande Martin Luther King, podemos observar sua estratégia de usar a mídia a favor da sua luta pacífica (e não passiva como alguns gostam de dizer!). Ele expõe de surpresa, o nível das agressões físicas a que estavam sujeitos os negros que lutavam pelo direito ao voto. A covardia usada para dizimar os protestos, atingia pessoas negras de todas as idades, sem nenhuma piedade eram surrados e mortos. Com essa exposição o Sr. King conseguiu apoio da opinião pública(dos brancos) e o levante foi iniciado com a colaboração que se somou aos protestos.Mas que tipo de pergunta é essa vindo de pessoas brancas? É uma espécie de confissão inconsciente de racismo. Porque se pessoas brancas não conseguem identificar as situações descritas acima e pior, não conseguem questionar o porquê disso é um claro sinal de que algo está muito errado com elas. Este seria um primeiro momento, um primeiro e importante sintoma e podemos observar em outras esferas da vida da pessoa que tem a pele branca, uma vez que essas pessoas também não enxergam que os espaços de poder e privilégio que ocupam há uma ausência de pessoas negras. Não as incomoda e só o que nos incomoda nos coloca para pensar e agir, porque na verdade o que nos incomoda é o que achamos errado e num país racista é um tanto óbvio que a prática do racismo quando é silenciosa, discreta e não expõe o alto grau de violência que representa não causa desconforto. Uma pessoa negra espancada e amarrada em um poste, em algumas pessoas causa um desconforto imenso, naquelas pessoas de natureza humana, ainda que também manchada pela sujidade da cultura racista.
Mas o racismo no Brasil, a luz do dia, não utiliza da violência física e sim simbólica.
Quando uma pessoa negra é rejeitada em uma entrevista de emprego, apesar de seu ótimo currículo, o entrevistador não é explícito, ele usa de subterfúgios para se livrar do negro que ousa tentar adentrar o seu ambiente de trabalho. Quando um homem branco, após longo período de relação escondida com uma mulher negra, modifica seu status de relacionamento para “um relacionamento sério” com uma mulher branca ele não diz que não assumiu aquela mulher negra porque sua família não permitiria ou porque ele é racista demais pra isso. Ele some e se faz de desentendido ou diz que essa mulher entendeu errado. Quando um amigo é surpreendido em uma atitude claramente racista e é apontado ele se justifica dizendo que “cresceu no meio de negros, seus avós eram negros e por isso ele estaria isento de ser racista”. São pequenas atitudes, grandiosas em sua carga de violência simbólica e psicológica, porém silenciosa e portanto não incômoda porque a pessoa branca não assimila quando presencia e disfarça para si mesma que é racismo quando é o autor da prática.
Existe ainda, atrelada a data designada para a Consciência Negra, a questão da conscientização dos próprios negros sobre a sua história, a sua ancestralidade que foi violentamente apagada quando da construção dos materiais que ilustrariam os tempos passados. E nos tempos presentes, com toda a mídia vendendo uma imagem genuinamente branca, pessoas negras mesmo as que alcançam graduação mais alta desconhecem sua cultura, suas representações intelectuais mais importantes. Quantos negros será que conhecem a fundo Frantz Fenon, Conceição Evaristo, Tia Ciata, Hélio Santos, Luiza Mahin. Ou os contemporâneos Djamila Ribeiro, Roberta Estrela D’alva, Maga Moura, Nataly Néri, Douglas Belchior? Na escola não me falaram de Lélia Gonzalez nem de Dandara. Nenhum professor me mandou ler Milton Santos ou Carolina Maria de Jesus. Mas eu li Monteiro Lobato e Ana Maria Machado. Eu aprendi sobre D. Pedro I e Platão. Não tive aula sobre pigmentocracia ou colorismo. Tem negro, no Brasil, que não sabe que é negro e reproduz racismo vitimando outros negros desse crime que ele internalizou.Caso fosse verdade, não seria pretexto para o seu apagamento, visto que existe uma extensa galeria de crápulas comprovados sendo homenageados nos bancos escolares e até denominando ruas! Ninguém questiona uma escola chamada Emílio Garrastazu Médici?
Anular a intelectualidade de um povo é contribuir com sua animalização, pois seres que não tem condições de pensar e produzir conteúdo resultante de suas reflexões e vivências não é um povo digno de ser tratado como humano. E o racismo faz isso, ao anular nossas vozes preparadas e intelectualizadas, nos confinam ao lugar não humano que a sociedade cultiva, nos coloca a disposição da escravização, pois essa seria nossa única utilidade. Isso seria humano o suficiente para merecer um dia a ser celebrado?
E por fim, precisamos de um dia específico para celebrar um ícone da raça negra e ensinar as nossas crianças um pouco de sua história. Foi uma troca justa, treze de maio por vinte de novembro, e como tudo que se refere a negritude, gerou essa polêmica interminável.
Então, querida pessoa branca, não questione sobre o dia da consciência humana, enquanto você não entende que seu racismo é desumano.
Joice Berth é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Nove de Julho e Pós graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista.