Dois anos sem Moïse

No mês de janeiro a morte do refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe completará dois anos. Moïse foi vítima de uma agressão brutal que o levou a morte no dia 24 de janeiro de 2022 em um quiosque no bairro da Barra da Tijuca, cidade do Rio de Janeiro, Brasil.

Falar um pouco sobre a vida de Moïse Mugenyi Kabagambe nos permite compreender o contexto da dura realidade à qual estão submetidos imigrantes e refugiados. Vamos tentar entender como essa realidade atingiu Moïse, ceifando sua vida.

Moïse Muegnyi Kabagambe nasceu na República Democrática do Congo, no ano de 1998. Chega ao Brasil na condição de refugiado, em 2011, aos 13 anos acompanhado de três irmãos. Estudou no Colégio Estadual Compositor Manacéia José de Andrade, no bairro de Madureira, Rio de Janeiro. Precisou interromper os estudos na segunda série do ensino médio para trabalhar e, assim, conseguir se manter ajudando no sustento de sua família. Desempenhou as funções de ajudante de cozinha e/ou garçom em restaurantes, lanchonetes e em alguns quiosques na orla das praias cariocas. 

Quando chegou ao Brasil, Moïse certamente não imaginou encontrar irmãos que não se reconhecem. Afinal de contas seu destino era o país onde pardos e pretos representam, segundo a edição de 2022 do Censo do IBGE (​​Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 55,5% da população. No Brasil, durante aproximadamente 350 anos, chegaram milhões de escravizados oriundos da região onde, no século XIV, existia o reino do Congo, na África centro-ocidental. Hoje, nessa região, se encontram Angola, República do Congo e República Democrática do Congo. Ou seja, o sangue que corre nas veias dos africanos é o mesmo nas veias da maioria dos brasileiros, talvez por isso Moïse esperasse encontrar alguma empatia ou solidariedade, mas veremos que isso não aconteceu.  

O Brasil concedeu à Moïse o status de refugiado em 2014. Isso significa dizer que, à exceção de votar e ser votado, ele tinha asseguradas, em tese, as mesmas prerrogativas de qualquer cidadão brasileiro, entre elas o direito à educação, à saúde, ao trabalho digno, à segurança e à vida. Mas, nenhum desses direitos lhe foram garantidos. Lembramos que isso não é um “privilégio” exclusivo de Moïse, observamos que na prática o Estado brasileiro ainda não é capaz de garantir esses direitos nem mesmo a seus cidadãos natos. Embora falasse quatro idiomas (português, francês, lingala e um pouco de inglês) e tivesse concluído o segundo ano do ensino médio, ele jamais conseguiu inserção no mercado de trabalho formal.

É possível que, depois de algum tempo no Brasil, Moïse tenha se dado conta que, ao longo da história, o Estado brasileiro sempre tentou se eximir da obrigação de promover a reparação necessária à população negra. Negou e nega as consequências nefastas do período escravocrata, sem garantir dignidade e direitos à população negra. Promove até hoje políticas que, de alguma forma, retomam elementos da escravidão e a sua violência. Essa manutenção oficial e deliberada das desigualdades sociais e raciais é uma das faces do racismo. 

Moïse veio procurar refúgio e proteção exatamente no Brasil, país que nunca pretendeu ser negro e que conhece muito pouco sobre as Áfricas, apesar da sua evidente africanidade. Aqui se promoveu uma falsa abolição que teve como política de Estado o embranquecimento da população com políticas de miscigenação racial (1888-1920). Foi adotado o mito da democracia racial que defendia a ideia de que o Brasil é um país cordial e amigável, mas até hoje normaliza a violência policial, que elimina, em sua maioria, jovens negros.

Quinze minutos, esse foi o tempo que a câmera de segurança do estabelecimento onde Moïse trabalhava registrou o crime do qual ele foi vítima. Ele foi imobilizado, teve as mãos e os pés amarrados às costas, foi agredido por cinco pessoas com chutes, socos, pedaços de madeira e um taco de beisebol, sem nenhuma chance de defesa, foram pelo menos 30 golpes. Sem socorro e sozinho em seu suplício não teve outra opção a não ser aguardar a morte.  Mas o que motivou tamanha descarga de ódio contra Moïse? 

Moïse trabalhou informalmente, por algum tempo, como garçom num quiosque, situado no bairro da Barra da Tijuca. No dia 24 de janeiro de 2022, ele foi ao quiosque com a finalidade de receber duas diárias que totalizavam R$ 200,00 (duzentos reais). Segundo familiares, com esse valor pretendia adquirir uma caixa de isopor, comprar e revender bebidas e desta forma não precisaria mais trabalhar para outras pessoas. Quanta ousadia em cobrar o pagamento de seu trabalho sendo ele quem era: africano, refugiado, jovem e negro.  Esses marcadores o colocam na posição mais baixa de nossa pirâmide social e, portanto, em condição de grande vulnerabilidade com sistemática negação de direitos, não só pelo Estado, mas também pela própria conjuntura das relações que o cercavam. 

As imagens das agressões sofridas por Moïse são estarrecedoras, durante o linchamento, assistido por várias pessoas, nenhuma delas tentou fazer com que a agressão cessasse. Isso diz muito sobre quem somos enquanto nação. E, como se não bastasse, depois de Moïse estar morto ao lado do quiosque, a atividade comercial não foi interrompida. Não houve qualquer comoção. Alguns clientes, mesmo diante do corpo, continuaram a consumir os produtos servidos pelo estabelecimento sem nenhum constrangimento.  Essas pessoas estão no “meltig pot” em que nossa sociedade se transformou, uma sociedade violenta, racista e que ainda não está curada dos efeitos do regime escravocrata. Podemos perceber que houve naquele ato a intenção de deixar um exemplo para as pessoas que se comportam fora dos limites aceitáveis e estabelecidos por uma sociedade racista e xenófoba.  

Após o crime permanecer ignorado pelo grande público por cinco dias, uma pequena manifestação da comunidade congolesa provocou um congestionamento capaz de chamar a atenção da imprensa que, por sua vez, noticiou o linchamento. Não fosse isso, a morte de Moïse provavelmente se somaria às estatísticas oficiais, seria só mais um número. Não podemos afirmar que esse caso romperá com práticas violentas, isso porque elas, infelizmente, fazem parte de nossa herança escravocrata, estão perpetuadas em nossa sociedade atingida pelo racismo estrutural. 

Quando observamos o cotidiano de imigrantes humanitários e refugiados, percebemos que suas rotinas são atravessadas por preconceito, dificuldades em diferentes graus e inúmeros problemas sociais tais como moradia em periferias e favelas nas cidades de nosso país. Além disso, para a maioria deles estão destinados os trabalhos mais precários como o de Moïse Mugenyi Kabagambe. Ninguém nasce refugiado. As pessoas se tornam refugiadas na medida em que são afetadas por guerras e outras adversidades, que as levam a sair de seus países a fim de preservar suas vidas. 

O racismo, a xenofobia, assim como outras formas de preconceito e discriminação estão presentes na sociedade brasileira. Isso é fato. O combate à essas práticas é um dever diário de todos nós. A Constituição Federal garante a igualdade entre nacionais e não nacionais. O direito à vida, à liberdade e segurança, a valorização da dignidade humana, a prevalência dos direitos humanos, a não discriminação e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a execução desses direitos fundamentais em sua plenitude só será possível em nosso país quando substituirmos a cultura da violência pela cultura de direitos humanos.

Não podemos esquecer que Moïse produziu, gerou valor e não foi pago por seu trabalho. No exercício justo e assegurado de reivindicar seu direito foi punido com a pena capital. Nossa herança escravocrata foi novamente posta em prática. Comparando, entendemos que o pelourinho esteve novamente montado: os golpes com pedaços de madeira e taco de beisebol substituíram a chibata; as cordas substituíram os grilhões; Moïse com pés e mãos amarrados foi “açoitado” impiedosamente até a morte

As investigações identificaram três autores do homicídio, eles estão presos e, ainda, aguardam julgamento. Outras três pessoas respondem ao processo em liberdade pelo crime de omissão de socorro.

Após o crime, houve uma fiscalização aos quiosques da orla da cidade do Rio de Janeiro. O Ministério Público do Trabalho constatou que, pelo menos, 256 trabalhadores, sem qualquer registro, trabalhavam em situação análoga à escravidão. Essa era a situação de Moïse Kabagambe.  

A morte de Moïse serviu para a criação da LEI ESTADUAL Nº 9.715, DE 10 DE JUNHO DE 2022 que estabelece o dia 24 (vinte e quatro) de janeiro como o dia do Refugiado Africano. 

Esse episódio demonstrou, da maneira mais sombria, nossas controvérsias relativas a direitos humanos, justiça, e, principalmente, aquilo que se refere às concepções mais elementares de cidadania em nossa sociedade.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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