Por que é errado dizer que “os negros escravizaram os negros”?

Quem nunca ouviu alguém falar que os negros escravizaram os próprios negros? Esse é um dos principais argumentos utilizados por pessoas racistas para deslegitimar os movimentos negros, para desqualificar as lutas das populações negras ao longo do tempo e para até mesmo destituir Zumbi dos Palmares da condição de herói nacional. As frases proferidas pelo senso comum mais utilizadas nessas situações vão na seguinte direção: “O racismo não é culpa dos brancos, pois os negros escravizaram os próprios negros”. Ou ainda: “Cotas étnico-raciais não são dívida histórica, pois foram os negros que venderam e escravizaram os próprios negros. Então, a culpa da escravidão é da própria população negra”. 

Em 2018, meses antes das eleições presidenciais, o então candidato à presidência Jair Bolsonaro, ao discutir cotas étnico-raciais no programa Roda Viva, disse que era contra a política de cotas, pois “ele nunca escravizou ninguém na vida” e que “o português nem pisava África, eram os negros que entregavam os escravos”. Na mesma lógica de pensamento, encontram-se os argumentos que colocam Zumbi dos Palmares em um patamar de vilão, tirano, o pior dos negros que escravizaram outros negros. Um exemplo nítido dessa argumentação foi a polêmica criada pelo presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, que declarou em abril de 2020 que: “Não tenho que admirar Zumbi dos Palmares, que pra mim era um filho da **** que escravizava pretos.” E com isso, segue-se uma série de outros ataques para perseguir, deslegitimar, desarticular e diminuir as lutas da população negra no Brasil ao longo do tempo e dos movimentos negros da atualidade. É como diz Nei Lopes em seu poema Brechtiana: “Lançaram a culpa da escravidão na ambição das próprias vítimas e debitaram o racismo na nossa pobre conta”.

Exaltar Zumbi dos Palmares como herói nacional é um posicionamento político e ideológico, assim como também o é culpar a população negra pela desigualdade racial. A ideia deste artigo não é discutir se Zumbi dos Palmares tinha ou não escravizados, tampouco argumentar se havia ou não escravização no continente africano ou discutir quem escravizou quem primeiro. O objetivo é iniciar uma reflexão sobre a lógica racista que perpassa o argumento de “negros que escravizaram negros” e desumaniza as experiências e pluralidades dos povos africanos e afro-brasileiro. 

O primeiro erro desse argumento está na generalização da África como uma única coisa. Falamos “a África” ou “os africanos” ou “os negros da África” como se estivéssemos falando do mesmo povo, da mesma região, da mesma identidade étnica, cultural e linguística. Quando falamos de África, falamos de um continente composto por 54 países, com mais de 800 milhões de habitantes, distribuídos em mais de mil grupos linguísticos. Mas, ainda assim, esquecemos toda essa pluralidade e a generalizamos. Falamos de cultura africana, culinária africana, literatura africana. O mesmo não ocorre com a Europa. Nós não falamos cultura europeia, culinária europeia e literatura europeia. Nós falamos sobre cultura francesa, culinária italiana e literatura inglesa. A generalização faz parte de um processo histórico que colocou a Europa como centro do mundo e outros povos e continentes como se fossem grandes massas periféricas.

A mesma lógica se aplica às experiências históricas desses povos do continente africano e é aqui em que se insere o equívoco maior de dizer que “os negros escravizaram os negros”. Faça um exercício mental rápido e tente recuperar em sua memória se, em uma aula de História, ouviu alguém falar sobre algum acontecimento histórico na Europa com o seguinte argumento: “Os brancos mataram os brancos, ou os brancos prejudicaram os próprios brancos”. Provavelmente nunca ouviu isso. Ao estudar sobre a Idade Média e sobre como a Igreja Católica perseguia quem era considerado pecador, com penalidades que incluíam torturas e mortes em fogueiras, não foi destacado que os brancos mataram os brancos. Você estudou que durante a Segunda Guerra Mundial os “Aliados” – Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos – lutaram contra o “Eixo”, formado por: Alemanha, Itália e Japão. Também nesta abordagem não foi ressaltado que os brancos mataram os próprios brancos ou que os europeus fizeram guerra contra os próprios europeus. Mas bastou falarmos sobre África para prevalecer a argumentação de que “os negros escravizaram os negros”. 

Isso acontece porque, ao longo do tempo, a História dos povos europeus foi exaltada enquanto experiências humanas com complexidades, especificidades e identidades plurais. A História da Europa foi retratada considerando povos distintos, nações distintas com questões específicas. E é com essa complexidade, que perpassa pelo rompimento da generalização de África que precisamos encarar a História dos povos africanos. É necessário considerarmos os distintos povos africanos em suas especificidades. Quando se fala que “os negros escravizaram os negros” de quais “negros” estamos falando? De reis? De súditos? Em quais costumes esses “negros” estão inseridos? Quais são suas crenças? No que se baseia a escravidão dentro de sua respectiva sociedade? 

Na África Central do século XVII (região onde hoje se localizam Angola, República do Congo e República Democrática do Congo), por exemplo, existiam diversos reinos. O reino do Congo, reino do Dongo, Matamba, Cassange, Benguela, entre outros. Os habitantes de cada um desses reinos não se identificavam como “negros” ou como “africanos”, muito menos se identificavam como iguais. Os reinos se constituíam em rígidas hierarquias, baseadas em ancestralidade, laços de sangue, poder sobre território, poder sobre pessoas, alianças políticas e militares. Havia pessoas com mais direitos do que outras; pessoas com mais poderes do que outras. Considerando a organização do Quilombo dos Palmares como a reconstrução de um reino centro-africano no Brasil, é possível dizer que esses valores e hierarquias também foram reproduzidos aqui. 

Angola e os reinos centro-africanos no séc. XVII (1) e Angola no séc. XXI (2)
Fonte: (1) MANGOVO, Munengo Patrício. Angola: Governação Local e Estatuto Especial da Província de Cabinda. Lisboa: 2012. (2) Wikipédia.

Tomemos, como exemplo, o reino do Dongo, formado pelo grupo étnico ambundo, no qual o idioma era o quimbundo, cujo soberano do reino se chamava Ngola (o que deu origem ao nome do país Angola). O Ngola era a autoridade máxima dentro de todo o reino. Mas o reino era dividido em várias regiões e cada região tinha um líder local, chamado soba. O soba era o chefe da aldeia, representava a liderança máxima dentro de seu espaço de domínio e exercia poder sobre todas as pessoas que residiam naquele território. Dentro das aldeias, havia os membros oficiais das famílias, chamados de crianças da “murinda”; e aqueles que eram chamados de quijicos, servos obtidos através de guerra, mas que não poderiam ser vendidos. Os quijicos eram uma extensão dos bens do soba e do Ngola. E, por fim, havia no Dongo a categoria social dos mubicas. Os mubicas eram escravizados obtidos em guerra que poderiam ser vendidos e eram muitas vezes usados como moeda de troca. Os mubicas estavam abaixo dos quijicos, que estavam abaixo das crianças da murinda, que estavam abaixo dos sobas, que por sua vez estavam abaixo do Ngola. Todas são categorias sociais distintas, divididas em hierarquias extremamente organizadas e baseadas nos valores dos ambundos. Percebam, os quijicos não eram livres e detentores de direitos, mas não poderiam ser vendidos, ao contrário dos mubicas. Isso porque a lógica de escravidão dentro dos valores ambundos é completamente diferente da escravidão que se desenvolve no continente americano.

Hierarquia social do reino do Dongo – Elaboração do autor.

Nessa sociedade complexa, fica evidente que não se tratava de negros escravizando negros. Eram sobas e Ngolas que exerciam seus poderes e domínios legítimos sobre pessoas. Não eram negros vendendo os próprios negros. Eram sobas e Ngolas vendendo mubicas, porque os mubicas não eram considerados iguais aos sobas e Ngolas. E são essas diferenças que precisamos enxergar. Não existia uma identidade única, uma classe social única, um grupo africano único. Os ambundos, assim como qualquer outro povo africano, enxergavam-se dentro de suas diferenças. E, da mesma forma como ocorreu ao longo da história da humanidade, essas diferenças resultavam em disputas, guerras, hierarquias e poderes distribuídos de formas diferentes.

Representação do Manicongo (rei do Congo) e do Ngola (rei do Dongo) séc. XVII.
Fonte: CADORNEGA, Antônio de Oliveira. História Geral das Guerras Angolanas. Tomo I, p. 02. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1972.

Entretanto, não é possível de forma alguma dizer que a escravidão dos mubicas do reino do Dongo era igual à escravidão do Brasil Colônia e Império. Não é possível dizer que os escravizados do Dongo eram iguais aos milhões de africanos escravizados nas Américas. A existência da escravidão no continente africano tem suas especificidades que a diferem profundamente do processo de escravidão que se desenvolveu no Brasil. A escravidão entre os povos africanos é a prova de que, assim como os povos europeus, asiáticos e quaisquer outros, os africanos são seres humanos inseridos em experiências históricas de grande densidade. Não se trata de negar a existência da escravidão dentro do continente africano. Mas dizer de forma genérica que “negros escravizaram negros” é negar a complexidade das sociedades africanas, é reduzi-las a um único grupo, é diminuir sua humanidade. E o mais importante: a existência da escravidão no continente africano não é justificativa para diminuir a cruel, violenta, genocida e desumanizadora experiência da escravidão africana nas Américas, não é pretexto para diminuir a gravidade das mazelas causadas por uma sociedade racista e tampouco deve ser utilizada para negar as reivindicações dos movimentos negros.

Quando reconhecermos a humanidade das experiências dos povos africanos, quando enxergarmos as sociedades africanas em suas complexidades e pluralidades para além de uma ótica racista, conseguiremos sair do argumento raso e generalizador de “negros que escravizavam negros” e entenderemos que a História é algo que vai além da dicotomia entre “bons e maus”, “opressores e oprimidos”, “vítimas e algozes”. 

 

Assista ao vídeo do historiador Guilherme Oliveira no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF07HI02 (7º ano: Identificar conexões e interações entre as sociedades do Novo Mundo, da Europa, da África e da Ásia no contexto das navegações e indicar a complexidade e as interações que ocorrem nos Oceanos Atlântico, Índico e Pacífico); EF07HI03 (7º ano: Identificar aspectos e processos específicos das sociedades africanas e americanas antes da chegada dos europeus, com destaque para as formas de organização social e odesenvolvimento de saberes e técnicas); EF07HI15 (7º ano: Discutir o conceito de escravidão moderna e suas distinções em relação ao escravismo antigo e à servidão medieval).

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS204 (Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formaçãode territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentesagentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismosinternacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), adiversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas).

Guilherme Oliveira

Formado em História e mestrando em História Social da África na Unicamp. E-mail: [email protected]. Instagram: @gui_oluko

 

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