Na volta ao Brasil, após participar do encontro entre União Europeia e Celac, o grupo de 33 países da América Latina, Lula fez escala em Cabo Verde. No breve encontro com José Maria Neves, mandatário da nação que faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o brasileiro prometeu recuperar relações com o continente. E errou feio, muito feio, ao expressar gratidão “pelo que foi feito (pelos africanos) em 350 anos de escravidão”. O agradecimento é devido aos homens e mulheres que, sequestrados de casa, sob trabalho forçado, opressão e assassinatos, construíram o Brasil, das lavouras às cidades, da mineração à cultura, da gastronomia aos cuidados com pessoas.
A gafe gigantesca, fruto do improviso, macula o líder político que reconhecidamente atuou pela aproximação do Brasil ao continente africano. Lula foi o único presidente a se desculpar pela escravidão dos corpos negros. Foi em 2005, durante viagem ao Senegal, ao lado de Gilberto Gil, então ministro da Cultura. Em visita à Ilha de Gorée, ponto de saída dos tumbeiros, ele pediu perdão. Não é trivial. Somente em abril passado, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, declarou que o país deveria se desculpar e assumir seu papel no comércio transatlântico de escravizados. Foi o mais perto a que um presidente português chegou.
O rei Willem-Alexander, da Holanda, se desculpou oficialmente pela escravidão no período colonial três semanas atrás, em 1º de julho. A rainha Elizabeth II, que ocupou o trono do Reino Unido por mais de sete décadas, nunca o fez. A Igreja Anglicana e o Banco de Inglaterra se desculparam em 2020 “pelo papel histórico de alguns de seus membros na escravidão”. Nos EUA, Bill Clinton recuou em 2008. No ano seguinte, meses depois de Barack Obama tomar posse como o primeiro presidente negro americano, o Senado se desculpou pela escravidão e pela segregação.
Na declaração final do encontro de líderes europeus e latino-americanos em Bruxelas, na Bélgica, o parágrafo 10 tratou da infâmia:
— Reconhecemos e lamentamos profundamente o sofrimento incalculável infligido a milhões de homens, mulheres e crianças como resultado do comércio transatlântico de escravos.
A Celac se referiu ao plano para justiça reparatória, assunto que ganha força na diplomacia global a partir da pressão de 14 países caribenhos.
Mundo afora multiplicam-se acordos de devolução de tesouros roubados por colonizadores. O Museu Nacional de Arte Africana Smithsonian, dos EUA, devolveu à Nigéria duas dezenas de peças, conhecidas como Bronzes do Benin, subtraídas pela violência colonial séculos atrás. Espaços de exibição agora mostram textos sobre a repatriação ética. Quênia, Egito, República de Camarões, Etiópia, Zimbábue e África do Sul são países que também reivindicam retorno de obras de arte, peças sagradas e pedras preciosas levadas pelos europeus. A Dinamarca anunciou que vai devolver ao Brasil um manto tupinambá, provavelmente levado por missionários jesuítas, que está em Copenhague desde 1699.
O Brasil tem 33 embaixadas em países africanos. Quase duas dezenas foram instaladas nos dois primeiros mandatos de Lula. Depois disso, o afastamento foi crescente. Documento do grupo de transição sobre política externa, em 2022, mostrou que somente seis missões estão com quadro completo. Em nove, só há um diplomata. Lula já falou em reabrir a representação brasileira em Serra Leoa e instalar uma em Ruanda. Convidou Congo e República Democrática do Congo, que abrigam florestas tropicais, para a reunião de países amazônicos, neste ano, em Belém.
No mês que vem, quando for à África do Sul para a cúpula do Brics, o presidente encontrará um embaixador recém-instalado. A missão estava sem titular havia um ano, após o governo sul-africano, em atitude inédita, ignorar o pedido de agreement de Jair Bolsonaro para Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus e ex-prefeito do Rio de Janeiro. Benedicto Fonseca Filho, ex-cônsul-geral em Boston (EUA), chega no fim do mês. Não é certo que apresentará as credenciais a tempo de atuar formalmente na reunião.
No discurso a embaixadores, em Brasília, em 25 de maio, Dia da África, Lula lembrou que, como presidente, fez 12 viagens ao continente e visitou 23 países. Prometeu reaproximar os dois lados. E agradeceu corretamente pela contribuição dos africanos na construção do Brasil. Há muito a fazer, além de evitar declarações equivocadas. Como presidente do país com a maior população negra fora do continente-mãe, Lula tem papel fundamental. E será cobrado.
Pode começar dentro de casa, priorizando políticas públicas (universais e focalizadas) para inclusão de pessoas negras. Pode contribuir para ampliar a diversidade nos espaços de poder, indicando mulheres e homens afrodescendentes para altos cargos no Executivo e no Judiciário, a começar pela sucessão de Rosa Weber no STF. Pode aumentar a presença de diplomatas negros e negras nas missões brasileiras no exterior, dentro e fora da África.
Há convergência nas agendas do Brasil e de países africanos sobre a situação global. Dos efeitos da guerra Rússia-Ucrânia na produção e nos preços dos alimentos ao enfrentamento à emergência climática; do cumprimento dos objetivos do desenvolvimento sustentável — o primeiro deles, erradicar a fome até 2030 — às políticas de reparação por séculos de escravidão; da proteção das florestas ao enfrentamento ao racismo. Fazer será melhor que falar.