Enviar arroz à África nunca vai conter a migração para a Europa, diz escritor de Gana

Para o escritor e ativista Ousman Umar, o caminho para tirar a África da pobreza passa por empoderar os jovens, e não por doar toneladas de arroz e comida.

Ele criou a Nasco Feeding Minds, ONG que busca ampliar o acesso dos jovens em Gana ao mundo digital, para que eles aprendam e pensem formas de melhorar a África. A educação também é caminho para evitar que eles caiam nas promessas de traficantes que tentam convencê-los a tentar ir para a Europa, em viagens arriscadas que incluem a travessia do deserto e do mar Mediterrâneo em condições precárias.

“Vivi cinco anos infernais tentando chegar à Europa e não quero que ninguém passe mais por isso”, diz Umar. Ele chegou à Espanha em 2005 e lançou dois livros sobre sua vida: “Viaje al País de Los Blancos”, em 2019, sobre sua travessia, e “Desde el País de los Blancos”, lançado no mês passado, no qual conta as dificuldades para se adaptar à Europa.

Umar, 32, participou do festival virtual Viva Livro, que reuniu autores que escrevem sobre migração, e falou com a Folha por telefone, de Gana. Abaixo, os principais trechos da conversa.

Como a pandemia tem afetado a migração da África para a Europa? Barcos com imigrantes seguem chegando. Cada vez mais gente quer ir embora, especialmente fugindo de guerras como as da Síria e da Líbia. A situação econômica piorou no mundo inteiro, mas na África piorou mais, porque os países eram mais pobres e já tinham problemas que vinham de muito antes.

Como está a pandemia em Gana? Em geral, há menos gente contaminada e mortes por coronavírus do que no Ocidente. Estou em Gana agora, e a situação está dez vezes melhor do que em Barcelona. A África viveu muitas outras epidemias recentemente, enquanto a Europa não tinha uma há quase cem anos, então sabe como fazer uma gestão melhor. Há casos em que há uma UTI para cada 1 milhão de habitantes, e, já que não temos como curar, temos que evitar que a enfermidade chegue. Na África, a população é muito mais jovem, e o coronavírus traz mais danos aos maiores de 50 anos, o que também é um fator.

Quais foram os momentos mais marcantes de sua jornada até a Europa? Com nove anos, deixei meu povoado e fui trabalhar na cidade. Aos 13, comecei uma viagem que passou por oito países da África. Cruzei parte do Saara a pé. Começamos a viagem em 46 pessoas, e só seis chegaram ao final com vida.

Na Líbia, cheguei sem dinheiro, sem celular e sem falar árabe. Chegava a uma cidade, trabalhava em qualquer coisa, que ninguém queria fazer, para juntar dinheiro e pagar um táxi até o povoado seguinte. Por isso, demorei cinco anos até chegar à Europa. Cinco anos infernais, cruéis. Por isso, decidi que ninguém merece viver o que vivi.

Fui tentar atravessar o Mediterrâneo em 2005. Traficantes disseram que em 45 minutos chegaríamos ao paraíso. Na primeira tentativa, 180 pessoas morreram. Na segunda, fiquei 48 horas sentado em um barco, sem comer ou beber, sem saber nadar e com a agonia de pensar que poderia morrer a qualquer momento.

E como foi depois de chegar à Espanha? Consegui a autorização para poder entrar, mas onde viver? Fiquei dois meses dormindo na rua em Barcelona, sem que ninguém me olhasse na cara. Nem no deserto me senti tão só. Tive a sorte que uma família me acolheu. Na primeira noite que dormi em uma casa, chorei como uma criança. Me perguntava o que eu tinha feito de mal para merecer tanta tortura e crueldade. E aí percebi que tinha dois propósitos: dar voz aos companheiros que não conseguiram chegar com vida [à Europa] e evitar que novos jovens caiam nesta armadilha infernal.

Como fazer isso? Assumi minha responsabilidade, como se fosse o presidente do meu país. Usei o dinheiro que ganhei como mecânico de bicicletas, juntei com empréstimos e doações de alguns amigos e comprei 45 computadores, em 2012. Contratei dois professores em Gana, que atuavam em duas escolas com aulas para inclusão digital. Hoje atuamos em 30. E sem ajuda de nenhum governo, só de pessoas que ouvem nossa história.

A caridade não vai mudar a África. Enviar toneladas de arroz não funciona e nunca vai funcionar. Faz-se isso há 60 anos e tudo segue igual. Tem que mudar a estratégia. Nossa ONG alimenta mentes. Chega de pensar só em estômagos. A única maneira de retirar a África da pobreza é empoderar as pessoas. Temos de alimentar as mentes dos jovens, que são ambiciosos e têm tantos anseios, para que eles mudem as coisas partindo de dentro.

Nas últimas eleições de Gana, tivemos o candidato mais jovem a chegar ao Parlamento. Não gosto da política. Tanto faz se você pensa verde, vermelho ou amarelo. O que gosto é de ver o exemplo para que muitos jovens vejam que a África tem muito potencial.

Como vê o efeito de movimentos de valorização dos negros, como o Black Lives MatterEstamos vivendo uma época de mudanças. Mas, embora haja intenções, as coisas vão muito lentas. Cheguei à Espanha em 2005, analfabeto. Em menos de dez anos, estava estudando na Universidade de Barcelona. Química, porque queria entender se a magia negra era verdade ou não. E eu era “o” negro da universidade. O único.

Para os imigrantes que chegam à Espanha, não há outro caminho a não ser os piores trabalhos, como colher tomates no campos, sem contrato, porque a lei migratória criminaliza o imigrante. Sem documentos, só resta trabalhar em coisas que os espanhois não querem fazer.

No ano passado, vieram 240 pessoas para Lleida, uma cidade na Catalunha, para colher maçãs. Como havia a questão do vírus, ninguém os acolheu, e eles ficaram dormindo em uma praça por duas semanas. Até que um deles fez um vídeo, contando a história, e postou no Facebook. Um jogador de futebol do Mônaco [Keita Baldé] viu o vídeo e se dispôs a pagar um hotel para que as pessoas deixassem de dormir na rua, como animais. Os hotéis estavam vazios, mas não quiseram alugar um quarto para essas pessoas, porque eram negras. Por outro lado, se morre um americano negro nos Estados Unidos, todo mundo posta “black lives matter” em seus perfis. Mas falta atuar de verdade. Isso realmente faz falta.

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