Foi numa mesa de um boteco, ali no bairro Bela Vista, que eu bati um papo com Joice Berth. Nós resolvemos ter mais uma companhia pra essa conversa: um bom copo de cerveja, já que os assuntos eram tensos. Relembrar, resgatar e vivenciar alguns momentos da nossa vida — principalmente quando se é mulher e negra — nunca é tão fácil. Não que a gente só beba uma gelada quando precisa tratar alguma ferida, longe disso, mas assuntos como direito à cidade, feminismo, afetividade, racismo, infância e maternidade foram colocados na mesa.
Por Patrícia Gonçalves, do Catraca Livre
Créditos: Reprodução/Facebook
O bairro do Mandaqui, zona norte de São Paulo, era o fluxo de uma criança que hoje nada tem a ver com a arquiteta e urbanista que bota a boca no trombone, ou melhor, no feed de notícias das redes sociais; pesquisa o direito à cidade com questões ligadas a gênero e raça, além de ser assessora do vereador Eduardo Suplicy. “Fui uma criança muito quieta quando saía do ambiente doméstico. Eu sentia o racismo, e aquilo me bloqueava quando saía de casa, mas eu não sabia que era isso”, contou.
Ruim no trajeto e pior ao chegar ao destino da maioria das crianças e adolescentes negras, a escola. Entre as quatro paredes da sala de aula, que mais parecia uma prisão, Joice passou por um dos trechos mais nebulosos da adolescência. E as estatísticas não nos deixam mentir: uma criança negra, entre 7 e 14 anos, tem 30% mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca da mesma faixa etária, segundo a pesquisa “O impacto do racismo na infância”, realizada pelo Unicef em 2010.
“Eu estudei a maior parte do tempo em escola particular, o que piorou ainda mais minha vida. Sofria racismo dos próprios professores. Lembro de uma vez ficar de castigo, meus amigos contarem para a professora que eu não tinha feito nada. Ela não quis saber, me deixou a aula toda de lá, no canto da sala. Eu chegava em casa e não falava nada. Achava que meus pais iriam me bater. Eles eram rígidos porque não poderíamos passar a impressão de que iríamos crescer e não ia dar boa coisa.”
A vida sempre foi um desafio, entretanto, os passos vinham de muito longe e foram bem além do que esta grande mulher esperava . “Eu gostava muito de arquitetura, mas achava que não ia conseguir. Depois que tive os meus filhos eu pensei: não, eu vou estudar. Trabalhava em um hospital psiquiátrico de madrugada em Pirituba. Depois, eu ia pro estágio, à noite estava na faculdade. Tive mais êxito do que eu imaginava. Eu queria um diploma.”
Ninguém dos Berth tinha cursado uma graduação naquela época. A conquista era estar além da média, para ela e toda a família. “Minha vó dizia que eu ia ter um dr. em frente ao meu nome.”
Infelizmente, este é o cenário racista brasileiro, quando a cor da pele tira os negros da concorrência ao ensino. De acordo com o IBGE, em 2004, 16,7% dos alunos pretos ou pardos estavam em uma faculdade. Dez anos depois, esse percentual saltou para 45,5%. Dos estudantes brancos, em 2004, 47,2% frequentavam o ensino superior. Em 2014, essa parcela passou para 71,4%.
Racismo e feminismo
Aos 16 anos, o cenário mudou. É intrigante pensar que aquela criança quietinha tinha escolhido novos amigos e eles eram punks. “Eu encontrei um povo diferentoso. Gente que não tava de acordo com a maioria. Eu via essa maioria e ela não me incluía, então, eu tinha que buscar pessoas que eram diferentes.”
Berth virou a chavinha, mas lá na frente as questões da infância não desapareceriam de forma tão fácil. “No meu tempo, o punk pegava comida, resto na mesa do lado e levava pra galera. Eu andava com a galera do movimento anarcopunk e depois chegou o hip hop”.
Racionais MC’s, Public Enemy, Lady Rap, Queen Latifah, Salt N Pepa era o que tocava na playlist da jovem, que depois dessa fase começou a descobrir uma Joice muito mais próxima a quem é hoje.
“Eu comecei a me sentir mais bonita, mais inteligente. Eu nunca me importei em ser negra. Eu tinha orgulho de quem eu era, mas ao mesmo tempo eu não entendia uma série de coisas, e isso me fez mudar. O rap foi o botão que apertou e falou: ser negro é ser luta. Vai achando que você vai conseguir se isolar deles e passar a vida inteira assim.”
Durante todo esse tempo, aquela jovem não combateu só o racismo, mas também o machismo. Ali, na década de 90, foi quando enxergou o movimento feminista. Ela só não compreendia porque a pauta nunca chegava ao seguinte destino: as mulheres negras.
“O feminismo branco não servia. Enquanto minhas amigas brancas falavam ‘não vou casar’, eu nunca tinha tido um namorado aos 16 anos.”
Ser preterida é um cenário vivido pela maioria das negras. Foi assim com Berth também. “Eu me apaixonei e fiquei com um rapaz negro. Quando eu estava apaixonada por ele, me trocou pela mocinha branca. E isso se repetiu, desde os 14 anos que eu sei que os homens preferem as brancas. O feminismo branco nunca falou disso”, afirma ela, que é Feminista Interseccional Negra, colunista do Justificando e do Nó de oito.
No entanto, o caminho providenciou um destino diferente para Joice, mais velha, ela se formou como auxiliar de enfermagem, teve seu primeiro filho, que hoje tem 20 anos. Ao todo, a maternidade bateu na porta dela quatro vezes. Todos filhos com seu ex-companheiro, como ela mesma diz, “ acima da média quando o assunto era machismo”.
O marido tinha muitos problemas com depressão, drogas e álcool. “Ele faleceu em 2013, suicidou-se após a primeira internação. Foi um choque. Meu casamento acabou por isso, não por quem ele era.”
Créditos: Reprodução/Facebook
Afetividade
“Vamos quebrar os romantismos, vamos enxergar a vida afetiva como ela é. Por mais que você ame uma pessoa, às vezes você não quer ela por perto. Um par não é uma fusão entre pessoas indissolúveis.” Essa é uma pauta recorrente nas redes sociais de Joice e que gera muita polêmica quando é colocada ali na linha do tempo.
“O relacionamento bom é o que acaba, porque ele deixa histórias. Ele transforma você. O relacionamento com o pai dos meu filhos me mostrou que eu posso ser uma mulher forte e lidar com as questões gerais da minha vida sem quebrar. Eu segurei a onda de um homem que estava ali caidaço. Mas mesmo segurando aquela onda eu não tinha obrigação. Mulher nenhuma tem obrigação de ficar como apoio de homem nenhum. Foi uma opção que eu fiz, mas quando essa opção começou a me mostrar que tava me derrubando demais, eu resolvi sair. A maioria das mulheres não consegue perceber isso.”
Naquela época, há quatro anos, Joice foi condenada por quem estava ao seu redor. Mais uma vez o machismo deu conta de desestruturar caminhos que deveriam ser mais curtos, afinal, a mulher de nada deve ser culpada por decisões que nunca couberam somente a ela.
“Foi uma decisão que nunca imaginei que poderia tomar com essas condições emocionais. Ele não estava bem com ele, não se esforçava para ser melhor. Quando ele se suicidou, só os meus filhos ficaram do meu lado.”
Tratar dessas questões é sempre doloroso e, para Berth, esta é uma das principais pautas que deveriam ser discutidas entre as mulheres. “O grande mal das mulheres é a vida afetiva, nós adoecemos porque temos uma vida afetiva muito errada. Em toda relação entre homens e mulheres, a mulher acaba ficando em uma posição de bengala do homem. Não importa: branca, negra, indígena e oriental. Ela tá ali pra apoiar o homem, não pra ser ela mesma, somar com ele e fazer uma transformação.”
Negros e o direito à cidade
Após muitos anos exercendo outras profissões, o sonho da menina que não achava que ia chegar a lugar algum tornou-se realidade.
Berth é arquiteta e urbanista pela Universidade Nove de Julho e pós-graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Pesquisa direito à cidade, questões raciais e de gênero aplicada a esse assunto.
Entre ruas, avenidas e plantas, porém, outros obstáculos surgiram.
“Eu trabalhei com arquiteto que ia fazer trabalho em favela e tinha nojo de entrar na casa. Trabalhei com muitos playboys metidos a revoltados.”
Segundo ela, o urbanismo carrega um mito de pessoas mais abertas, mas no dia a dia as posturas mudam. “Eu sofri muita segregação por parte dos colegas, dos contratantes. Eu era chamada pra ir até a favela, mas não me chamavam pra projetar um edifício de alto padrão. Quando era necessário fazer um reunião grande, me deixavam de escanteio. Era e é assim. Para eles, enquanto eu tenho a cara da favela, dou a cara a tapa, tá tudo bem.”
Créditos: Reprodução/Facebook
Se para essa maioria, não só de arquitetos e urbanistas, mas grande parte da população, estamos avançando, Joice Berth, tira o sapatinho e põe o pé no chão para dizer que o buraco é mais embaixo. “O conservadorismo não quer que a gente esteja na rua. A pessoa negra foi jogada nas bordas da cidade. A predominância do espaço urbano precário é composta de negro, e o miolo que é totalmente privilegiado só tem branco.”
Ela ainda ressalta que esse é o dia a dia de quem tenta acessar locais que deveriam ser para todos. E se as pessoas ainda precisam de provas, o racismo faz questão de ser velado principalmente quando é necessário chegar a locais majoritariamente brancos. “O direito à cidade não é exercido pela maioria. Eu, mulher negra, não posso frequentar certos espaços, ninguém me diz isso, mas eu entro em um supermercado, e as pessoas me seguem. Eu entro em uma loja, ninguém me atende, quando me atendem mostram o sapato da liquidação. Eu entro em um restaurante e me olham torto.”
Ainda há de se lutar para que esses espaços sejam conquistados e é isso que Joice Berth e outras mulheres negras vêm fazendo nas redes sociais e fora delas. Tudo começou lá atrás, com uma minoria aparecendo nas ruas e com pequenas inserções que já botavam lenha na fogueira, como Sueli Carneiro, Lelia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus.
Ao fim desse bate-papo, ficou a reflexão: “Enquanto você não entende o racismo, você acha que o problema é com você. O racismo não é um problema de nós, negros, mas sim dos brancos. É um problema criado por eles, para eles se autoafirmarem”.