“Eu não conheço a cidade. O Rio pra mim foi só prisão”, diz Rafael Braga após 10 anos de injustiça

Preso no contexto das “jornadas de junho de 2013”, o catador de latas nunca mais se viu livre

Há dez anos, o centro do Rio de Janeiro transbordou de gente ao receber cerca de um milhão de manifestantes – o auge do movimento que marcou a história como “jornadas de junho de 2013”, maior levante popular do país desde as Diretas Já. E Rafael Braga, preso nesse dia, não era um deles. Sim, ele estava no centro da cidade. Mas não participou das manifestações. Mesmo assim, seu rosto – estampado em muros e cartazes em todo o país – tornou-se o mais brutal símbolo de injustiça em meio à intensa repressão contra manifestantes naqueles dias inesquecíveis.

Catador de latinhas e outros recicláveis, o jovem negro de então 25 anos sempre viveu à margem. Da favela onde vive sua família, na Zona Norte da cidade, ele saía somente para onde pudesse encontrar mais materiais pra catar, enquanto sua mãe e seu padrasto catavam mais perto de casa. Na região central do Rio, Rafael garimpava as ruas por dias, até acumular o suficiente para vender e poder voltar para casa com algum dinheiro para a família.

Quando foi abordado, agredido e injustamente preso, em 20 de junho de 2013 – acusado de portar material explosivo, quando tudo o que levava nas mãos eram um frasco de desinfetante Pinho Sol e um de água sanitária, ambos lacrados –, ele não sabia que as manifestações tinham como ponto de partida, antes de abarcarem outras pautas, o aumento da tarifa de ônibus em 20 centavos. Entretanto, era ele, exatamente, uma das principais vítimas dos problemas de mobilidade urbana e elevados preços de passagens que, desde sempre, o impediram de transitar pela cidade.

Chamado de “morador de rua preso com Pinho Sol” em matérias, e assim considerado por muitos até hoje, Rafael era, na realidade, um trabalhador muito pobre que, sem dinheiro para pagar a condução de volta pra casa, passava dias dormindo nas ruas enquanto catava latinhas. Mas ele tinha uma casinha – um barraco, como ele diz – e uma família, cuja renda dependia majoritariamente do dinheirinho que ele conseguia como catador.

Rafael após deixar o Sanatório Penal, em Bangu, para tratar em prisão domiciliar a tuberculose que contraiu no sistema prisional, em 2017. Foto: Luiza Sansão

Rafael após deixar o Sanatório Penal, em Bangu, para tratar em prisão domiciliar a tuberculose que contraiu no sistema prisional, em 2017. Foto: Luiza Sansão

Ao longo de 28 publicações que precedem a de hoje, contei como Rafael passou por outra prisão em 2016, quando tinha acabado de passar para o regime aberto com uso de tornozeleira eletrônica. Assim, enquanto ainda cumpria pena por supostamente portar coquetel molotov (que, diga-se, ele não sabia o que era até a noite de sua prisão), foi acusado de tráfico e associação ao tráfico de drogas, quando policiais o abordaram na favela, a caminho da padaria onde compraria pães para a família, e ameaçaram “jogar arma e droga na tua conta”, caso não delatasse traficantes da região.

E então, depois de violências físicas e psicológicas, em meio às quais Rafael tentava dizer que era “o rapaz preso com Pinho Sol” e não tinha feito nada de errado, surgiu uma sacolinha azul contendo 9,3 g de cocaína, 0,6 g de maconha e um morteiro. Uma audiência de custódia depois, acumulava outra acusação absurda: agora, além de manifestante portador de desinfetante explosivo (contém ironia), era traficante – tudo com base somente nos depoimentos dos policiais que o prenderam, tanto na primeira, quanto na segunda vez. Isso só foi possível porque vigora no Tribunal de Justiça do Rio a Súmula 70, de acordo com a qual “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Sem contar que mesmo as quantidades de drogas supostamente apreendidas, e apresentadas como prova, somente com muito malabarismo judicial poderiam ser consideradas como evidência de tráfico e menos ainda “associação ao tráfico”, de modo a justificar a inacreditável e cruel pena de 11 anos e três meses de prisão.

Rafael algemado durante julgamento, em 2016. Foto: Luiza Sansão

Em novembro de 2018, após recurso apresentado por sua defesa, representada pelo Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), ele foi absolvido da acusação de associação ao tráfico de drogas e a pena caiu para 6 anos e 600 dias-multa.

Ele encontra-se, agora, em liberdade condicional, restando ainda dois anos e meio de pena a cumprir, período ao longo do qual é obrigado a comparecer em juízo, a cada três meses, para assinatura. “Na prática, é uma liberdade com muito mais condições, limitada pelo trauma de duas condenações penais injustas e pela exclusão social reiterada todos os dias pelo Estado brasileiro. A verdade é que não existe ressocialização, o que faz a prisão é aprofundar a exclusão”, diz o advogado Thiago Melo, coordenador do DDH – que assumiu a defesa de Rafael após a condenação em primeira instância, em dezembro de 2013. Até então, o caso estava com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

“Sinto que Rafael carrega ainda dentro de si a prisão, sublinhada a cada assinatura, e não é qualquer cárcere, é esse que sabemos caracterizado pela violação massiva dos direitos humanos. Quero vê-lo plenamente livre, mas receio que nossa sociedade não ofereça chances reais para isso. Só existem frestas no sistema para se conquistar a liberdade”, completa Thiago.

Privação do direito à cidade: “Eu só conheço a favela e a prisão”

Se em todas as matérias até aqui tratei especialmente da seletividade do sistema penal e a evidente violência racista que motivaram as duas condenações injustas que lhe consumiram esta década de vida, aqui venho destacando outra questão, tão presente nas reivindicações que marcaram as “jornadas de junho”: o direito à cidade. Falei um pouco sobre isso em entrevista a Leonardo Sakamoto, na última sexta-feira.

Na quarta-feira passada (14), quando visitei Rafael na favela, conversamos um pouco sobre o período em que ele viveu com a mãe, Adriana, em Aracaju (SE). Foi entre seus dois e doze anos, época da qual ele guarda boas recordações. Lá, pescava, ganhava uns trocados engraxando sapatos, tinha a sensação de andar livremente. Ele fez referência a esse tempo, sobre o qual também já me escreveu em carta, quando estava preso, com um sorriso – que desapareceu de seu rosto quando, na sequência, falamos sobre o Rio.

“Eu só conheço a favela e a prisão. Eu não conheço a cidade. O Rio pra mim foi só prisão”, disse-me Rafael. Nessas poucas palavras, ele expressou algo tão profundo.

Quantos outros jovens, negros como ele, pobres como ele, favelados como ele, vão “de graça p’ro presídio e para debaixo do plástico”, como cantou Elza Soares em “A carne”? Que direito têm essas pessoas à cidade, se quando um catador que tentava garantir honestamente o sustento de sua família foi preso por estar num lugar em que – é como se tivessem lhe dito, ao prendê-lo – não poderia estar? Que direito, se foi enviado para a prisão, sem que ele cometesse crime algum, como uma mensagem clara de que seu lugar era fora e somente à margem ele poderia existir?

Rafael nunca teve nada. Rafael nunca teve direitos. Rafael tornou-se – somente porque a injustiça de que foi vítima foi flagrante – um símbolo de injustiças que destroem vidas como a dele cotidianamente, especialmente nos grandes centros urbanos, onde presídios e cemitérios estão lotados de pessoas exatamente como ele. Mas ele não é diferente de nenhum outro jovem nascido e criado em condições adversas e na incerteza de tudo.

O que o diferencia é a evidência tão inacreditável, de tão óbvia, de que forjaram flagrante para prendê-lo, e o contexto em que isso ocorreu – quando existia uma clara pressão por prisões, já que diversos manifestantes estavam sendo criminalizados por estarem nas ruas protestando, em meio a expressões pacíficas e, em menor quantidade, também atos de vandalismo. Pessoas brancas, de classe média, foram detidas. Todas passaram por seus processos em liberdade. Mas Rafael é preto.

Preso naquele 20 de junho, não mais se viu livre: nem antes de ser condenado em primeira instância, cinco meses depois, nem de lá pra cá

Diante da impossibilidade de que seja devolvido a Rafael todo esse tempo de vida que lhe foi roubado, penso que as únicas atitudes dignas que o Estado brasileiro pode ter, depois de tamanha crueldade cometida contra ele, é oferecer uma indenização – e generosa – à família Braga, pedir perdão pelo que lhe causou e anular esse borrão na ficha criminal de Rafael.

Se eu espero que isso aconteça? Seguirei lutando por isso e torcendo para que ocorra a tempo de poder ver, de alguma forma, redimida, depois de tanta miséria e sofrimento, essa família – por quem acabei desenvolvendo grande apreço e que de coração aberto me confia o que foi publicado até aqui, o que sigo escrevendo e o impublicável.

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