Precisão histórica e olhar crítico para contradições da sociedade americana marcam o filme
Por Luiz Carlos Merten Do Estadão
Raoul Peck pode não ser uma personalidade midiática, um autor pop como Quentin Tarantino ou Lars Von Trier, mas ele está marcando presença na Berlinale com dois filmes e uma intensa participação em debates e encontros. Sua grande preocupação tem sido evitar que se fale ao mesmo tempo sobre a ficção O Jovem Karl Marx e o documentário Eu Não Sou Seu Negro, indicado para o Oscar da categoria. Peck só concede entrevistas para falar separadamente de cada filme. Cabe ao interlocutor relacionar os dois. Por enquanto, só um está estreando no Brasil, nesta quinta, 16, e é o documentário.
Ambos demoraram em torno de dez anos para se viabilizar. “No caso de Eu Não Sou Seu Negro, foi o período que demorei para adquirir os direitos de James Baldwin, mas, na verdade, eu já o vinha deglutindo há 30 anos. James foi fundamental numa fase da minha vida em que, como negro, me questionava sobre quem eu era e qual o meu papel no mundo. Ele viveu um tempo na Europa, na França, e isso lhe deu um distanciamento para olhar a sociedade dos EUA com todas as suas contradições. A radicalização dos anos 1960 meio que o deixou de lado, mas creio que hoje há um retorno a seus escritos. É impossível refletir sobre a identidade negra, na América, sem fazer referência a James Baldwin e seus ensaios.”
Raoul Peck. Diretor levou 30 anos deglutindo obra de James Baldwin para fazer filme sobre a imagem do negro
De cara, no próprio filme, Peck conta que se inspirou num projeto inacabado de Baldwin, um livro sobre três lideranças que foram assassinadas na época do movimento por direitos civis. Dois deles são conhecidíssimos em todo o mundo, Malcolm X e Martin Luther King. O terceiro não é menos importante, Medgar Evers. “Acho que o mais difícil nesse filme foi encontrar o link entre cada um deles e o que ocorria na América e relacionar com o próprio James, que vivia um momento particular de sua vida. Porque o filme é, acima de tudo, sobre a construção da imagem do negro.”
O diretor fez uma pesquisa acurada. Obras de ficção, de propaganda, cinejornais. É interessante ver como já antes da integração a publicidade retratava um segmento da classe média negra em condições de consumir. “Associamos tanto consumismo com alienação que deixamos de reconhecer que a integração, no mundo capitalista, passou por aí. Era impossível continuar não reconhecendo uma parcela tão significativa de consumidores.”
As discussões mobilizam personalidades públicas como Marlon Brando, o diretor Joseph L. Mankiewicz, Sidney Poitier e Harry Belafonte. “Mas eu não queria ficar só no passado. Era importante trazer essa discussão para o presente. Terminar com esses rostos é tão necessário para mim como ter Samuel L. Jackson não como narrador, mas como a voz que interpreta aquelas palavras e lhes dá sentido. E Sam tem a credibilidade das ruas, é outra coisa que queria alcançar.”
Sobre seu jovem Karl Marx, Peck disse, na apresentação do filme, que viveu na Alemanha numa época em que a leitura de Marx era obrigatória. “Formávamos grupos para estudar suas vida e obra, para buscar o significado nas entrelinhas.” Seu filme sobre o líder revolucionário congolês Patrice Lumumba, assassinado em 1961, é considerado um marco, mas o belo e apaixonado Karl Marx do autor está agora sob suspeita. Isso tem mais a ver com o estado do mundo do que com a obra de Peck. Ele flagra, ficcionalmente, o momento em que Marx e Friedrich Engels, interpretados por August Diehl e Stefan Konarske, trabalham juntos na redação do Manifesto Comunista. Para o bem e para o mal, aquelas frases são imortais – “Um fantasma ronda a Europa (o ano é 1848). É o fantasma do comunismo…” Certamente, não é esse o fantasma que ronda a Europa (e o mundo) atualmente, daí a provocação do filme.
A maioria está achando O Jovem Karl Marx muito romântico. Peck está sendo cobrado, não pela visão crítica que ele tem de seus personagens, mas pelo que escapa ao conceito do projeto – a condenação dos anos de comunismo que vieram depois. Toda a ‘right wing’ (direita) está lhe cobrando isso.
Como os rostos no final de Eu Não Sou Seu Negro, O Jovem Karl Marx termina com uma colagem de faces que representam a força e beleza da classe operária, ao som de Like a Rolling Stone, de Bob Dylan.