Nos últimos dias, tem gerado bastante discussão um vídeo gravado por um estudante do curso de Administração da USP. Nele, um grupo de estudantes negros toma alguns minutos da aula para, em linhas gerais, abordar o racismo estrutural da Universidade de São Paulo, mas são interrompidos pela professora e também por alguns alunos que, nas suas palavras, “querem ter aula”. O episódio evoca uma série de temas e, entre todos eles, quero aqui destacar um perfil de estudante que as melhores universidades do País têm selecionado em seus vestibulares e, cumprindo sua função social, seguem formando em seus espaços acadêmicos: o maníaco das horas-bunda.
Por Henrique Braga, do Brasil Post
A expressão “horas-bunda”, curiosamente, aprendi com um excelente professor da faculdade de Letras, na própria USP. Ele, professor-titular nas três estaduais paulistas, insistia conosco na necessidade de não vermos a sala de aula como um fim, mas como um dos espaços de aprendizado. Dizia ele que muitos alunos agiam como se o simples ato de sentar-se numa sala de aula fosse o suficiente para serem bons estudantes e, para debochar dessa atitude, ele a tratava carinhosamente como um acúmulo de “horas-bunda”.
No famigerado vídeo, um jovem adulto universitário, usa o argumento do “quero ter aula” para silenciar o protesto dos jovens negros. Convidado a refletir sobre a realidade que o cercava, ele limitou-se a dizer que a aula de microeconomia não era adequada para aquele tipo de debate. No entanto, vale destacar que, antes de ele se manifestar, a reação da própria professora certamente o encorajara, pedindo que os jovens se retirassem em nome da sacrossanta aula, que não podia parar.
Sem querer reduzir esta reflexão a um julgamento sobre a colega professora, sugiro que pensemos além: a Universidade de São Paulo não seria um espaço cuidadosamente moldado para que as questões sociais não intervenham jamais no processo tecnicista de reprodução do conhecimento? Como de outro modo professora e aluno se sentiriam tão confortáveis para negar poucos minutos àqueles que, em busca de apoio e combatendo a exclusão, adentraram aquele espaço? Aliás, se a USP – principal universidade de um dos países mais desiguais do mundo – levasse a sério sua relação com a sociedade toda e não apenas com as elites, a questão do acesso ao ensino superior não seria prioritária, ao contrário do que se vê no vídeo?
Sem saber, o jovem que registrou o embate entre os grupos nos brindou com uma síntese de um coquetel perigosíssimo: uma instituição ainda elitista, em meio a um país que vem lutando para combater as desigualdades que o assolam, cujo sistema de ingresso privilegia estudantes moldados na cultura do “senta e estuda”, da passividade diante de um saber pronto, cultuada nas “melhores escolas do país” – ou pelo menos das que mais aprovam nos mais concorridos vestibulares.
Não é exagero, portanto, deduzir que a falta de criticidade no espaço acadêmico parece começar com vestibulares que favorecem uma formação vitoriosa no ensino do Ciclo de Krebs, dos ácidos desoxirribonucleicos e das guerras da Mesopotâmia, mas deficiente para formar cidadãos críticos e capazes de resolver civilizadamente os conflitos da vida em sociedade. Em vez da cidadania, as indispensáveis “horas-bunda”. E vamos seguindo sem questionar as estruturas de poder e de exclusão, sem refletir sobre nossos problemas sociais (que deveriam sim ser objeto de estudo numa faculdade de economia) e sem sequer definir qual é o real papel da escola na realidade brasileira. A “Pátria Educadora” vai em frente, reduzida a um slogan cafona incapaz de dar conta de uma realidade caótica e desoladora, em que a aula de microeconomia jamais pode ser interrompida pela vida real, que seguirá batendo à porta. Cada vez mais forte.