Fantasma da escravidão mantém negros como cidadãos de segunda classe

Em 'Perder a Mãe', Saidiya Hartman evoca horrores do passado para incitar esperança de transformação do presente

Às vezes, entre um trabalho e outro, consigo encarar a pilha de livros que se acumula. Me aproximo sem pensar e retiro dois ou três volumes que me despertam curiosidade e interesse, deixando-os mais próximos. Deixar as distrações de lado é importante: o telefone pode passar boa parte do dia desligado, e longas viagens com conexões e sem sinal de internet também podem ser de grande ajuda.

Diante das demandas inesgotáveis da vida, ler é me deparar com fluxos de ideias que me fazem perceber que nunca mais serei o mesmo. Foi assim com “Perder a Mãe: uma Jornada pela Rota Atlântica da Escravidão”, da norte-americana Saidiya Hartman, publicado no Brasil pela Bazar do Tempo.

A escritora americana Saidiya Hartman, que publica ‘Perder a Mãe’ no Brasil – Divulgação

Esse livro poderia ser classificado como memórias, história e ensaio, mas também poderia ser uma autobiografia da escravidão. Difere dos clássicos, como as memórias de Frederick Douglass, Harriet Ann Jacobs e Sojourner Truth. Porém, o que torna “Perder a Mãe” único é que foi escrito neste tempo —2006 é o ano de sua publicação original— por uma mulher, professora da Universidade Columbia e escritora com vasta bibliografia.

Saidiya Hartman se propõe a investigar a escravidão com os olhos do agora e se inclui nessa narrativa de encontros, desencontros, estranhamento e descobertas dolorosas porque entende que seu legado sobre o mundo contemporâneo, em particular nos EUA, é inquestionável.

“Eu também sou a sobrevida da escravidão”, escreve Hartman em determinado trecho. Como uma mulher negra em uma sociedade ainda longe de superar a ferida do racismo, ela reconhece que os quase quatro séculos de práticas perversas nos legaram “uma medida humana e um ranking de vida e valor que ainda têm de ser desconstruídos”. Ser negro é ser cidadão de segunda classe.

Para Hartman, a escravidão persiste não por uma “obsessão antiquada” dos afro-americanos, mas porque “vidas negras estão ainda sob perigo” por uma equação racial criada há séculos e que persiste de inúmeras maneiras como uma sobrevida da escravidão. Os ecos desse tempo persistem nas desigualdades sociais, nas oportunidades incertas, na falta de acesso à saúde e educação, na morte prematura, no encarceramento e na pobreza extrema.

As certezas de Hartman se confirmam à mesma medida que também desmoronam no seu encontro com Gana e os fortes que serviram de entreposto para o tráfico humano. Visitas a monumentos históricos, como o forte de Elmina, além do seu encontro com os arquivos documentais, as rotas de tráfico do interior ao litoral, onde os tumbeiros aguardavam a “carga humana”, vão se apresentando como uma narrativa possível de como se percebe essa história do outro lado do Atlântico, no solo recriado pelo imaginário dos herdeiros da diáspora, a mítica África.

Ao chegar a Elmina, Hartman sente o desprezo das pessoas que estão à sua volta quando escuta uma voz lhe dizer “Não há nada aqui para você”. Ou quando um senhor octogenário lhe pergunta: “É negra ou preta?”. Chegaram os americanos para chorar pelos mortos, mas isso já faz tanto tempo…

Hartman desejava estar em Gana para se sentir acolhida como parte daquele lugar, mas se descobre uma eterna estrangeira. Às vezes, ela é vista como uma “pessoa branca” por seu status social e econômico. Depois, descobre que se trata apenas de uma retórica. Em pouco tempo, percebe que o racismo grassa ali também, seja no tratamento dado por comerciantes estrangeiros aos locais, seja pelos próprios ganenses acostumados a favorecer pessoas brancas em bancos e supermercados, por exemplo.

Se a barbárie tão desumana prosperou por tanto tempo é porque o empreendimento colonial europeu maximizou cisões e desigualdades que já existiam naquela paisagem. Se alguém precisou deixar o continente, desumanizado e objetificado, os que ficaram enriqueceram com montanhas de búzios que depois se mostraram imprestáveis.

É nas contradições dessa narrativa cruel e ainda central nas nossas vidas que residem a força e a beleza desse livro. “Eu sou a lembrança de doze milhões que cruzaram o Atlântico e de que o passado ainda não acabou”, escreve Hartman.

O passado não acabou porque entre nós existe Vila Cruzeiro, Jacarezinho, Gamboa. Não acabou porque mulheres continuam a ser resgatadas de lares onde servem em condição de escravidão, e seus opressores repetem: “Era como se fosse da família”. Cativos sempre pertenceram a alguma família.

É preciso ler e debater porque há esperança na história, como nos diz a autora: “Com que finalidade alguém evoca o fantasma da escravidão se não para incitar as esperanças de transformar o presente?”.

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