Giovana Xavier: ‘Não estou na vida acadêmica para ser legitimada pelo script branco’

Com livro recém-lançado, historiadora afirma que sua militância, hoje, é pelo reconhecimento da produção intelectual das mulheres negras brasileiras

Por Renata Izaal, do O Globo

Giovana Xavier, historiadora e professora da Faculdade de Educação da UFRJ Foto: Arte de Ana Luiza Costa sobre foto de arquivo

“Quando uma mulher negra tem a oportunidade de falar, ela não pode errar a seta”, me diz Giovana Xavier entre xícaras de espresso e de chá durante quase três horas de entrevista, realizada em um café na Tijuca. Historiadora, professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras e do catálogo de mesmo nome, ela é também autora do perfil @pretadotora, que tem 25 mil seguidores no Instagram. Nele, Giovana debate privilégios e preconceitos, a construção do pensamento dentro das universidades brasileiras, maternidade e a produção intelectual e os afetos das mulheres negras.

Parte dessa produção está em seu primeiro livro, “Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história” (Editora Malê), que reúne mais de 30 crônicas escritas por ela para o portal Nexo e os blogs Conversa de Historiadoras e Preta Dotora.

Nelas, Giovana questiona até a si mesma como no texto em que assume: “tornei-me o que eu mais temia, uma colunista negra que só fala de racismo”. O importante, ela afirma, como pensadora, educadora ou produtora de conteúdo é o legado coletivo: “Não estou na Academia para ser legitimada pelo script branco. Eu trabalho para produzir conhecimento que seja relevante para quem sempre foi destratado como pessoa”.

Então você se tornou uma colunista negra que só fala de racismo.

Quando comecei a escrever esses textos, pensei que não queria estar confinada a falar sobre racismo ou a ser a intelectual convocada a opinar cada vez que ocorre uma tragédia racista no Brasil. Eu queria escrever sobre as séries e livros, mas as estatísticas são alarmantes. Então falo das séries e dos livros, mas articulando com a situação do país. Só que o faço pensando em vida, porque acredito que a pauta mais importante de hoje é inspirar as pessoas a investirem em termos individuais.

E como faz isso?

Nós sabemos que a mulher negra está na base de todas as estatísticas pela falta de políticas públicas para nós enquanto grupo. Mas quem sabe o quanto foi importante para a família de uma aluna entrar pela primeira vez na UFRJ e ver a filha se formar médica? Temos que falar sobre isso.

O impacto da universidade no entorno dos seus alunos é uma preocupação sua?

Saber que uma mãe voltou a estudar ou que uma aluna minha leu Conceição Evaristo para a avó semialfabetizada, mexe muito comigo. O fundamental é minhas alunas entenderem que não dá para fazer tudo a esmo. O projeto das pessoas negras tem que passar pela educação. Esse é o único lugar em que a gente pode conseguir transformação em massa.

Passar por um sistema educacional que, historicamente, é excludente.

Foram muitas mudanças nos últimos anos, a principal foi a entrada de alunos pobres, em sua maioria negros, mas as pessoas não sabem lidar com isso. Ainda hoje há quem ache um favor incluir autores negros na ementa, por exemplo.

A perspectiva dos negros foi silenciada na Academia?

Eu dou aula no mesmo lugar onde estudei e, 20 anos depois, vejo que continuam pensando a formação do Brasil pela ciência hegemônica. Existe no país um sentido de intelectualidade que está ligado à cultura do patriarcado e do privilégio. No Brasil, intelectual é o homem branco, vindo da família escravocrata. Sabe aqueles cujos sobrenomes são nomes das ruas da cidade? Eles.

Isso acontece apesar da mudança no corpo docente das universidades?

Sim. Temos mais pessoas negras e pobres na universidade, mas ainda somos minoria. E esperar que cada uma dessas pessoas faça ciência contra-hegemônica é um preconceito também. Essa situação é agravada pelo racismo e pelo machismo. Pessoas negras são vistas como trabalhadores braçais. Com as mulheres negras é ainda pior. Eu já estou de saco cheio de Carolina Maria de Jesus ser sempre apresentada como a ex-favelada que escreveu um livro.

Como você gostaria que ela fosse apresentada?

Como uma intelectual negra. Ela interpreta o Brasil do ponto de vista de mulher negra. Em “Diário de Bitita” — Bitita era o apelido de infância dela —, Carolina conta que seu sonho era ser doméstica com carteira assinada, isso na São Paulo dos anos 1940. Ela foi do interior de Minas, a São Paulo a pé, mas não realizou o sonho de trabalhar com carteira assinada. Essa trajetória é fundamental para entender a História do Brasil sob o ponto de vista das classes trabalhadoras.

Apesar das ações afirmativas, a universidade continua desigual?

A desigualdade permanece, mas não é estática. Autoras negras têm entrado nos programas clássicos. Mas é apenas uma aula e, geralmente, eu sou convidada para essa única aula. Mas já é um avanço. Eu entendo os limites das pessoas: deve ser impactante montar um curso de História do Brasil Colonial sob a perspectiva das mulheres negras. Mas qual o problema nisso se somos a maioria da população?

A desigualdade está apenas no currículo dos cursos?

Algumas questões são práticas. As aulas do turno da manhã começam às 7h. Eu tenho alunos que moram em favela e, principalmente os homens, não podem estar nesse horário na universidade porque se saírem de casa às 4h da manhã são alvos em potencial. Ou esse aluno corre risco de vida ou espera que o professor abra uma turma à noite. Há aulas noturnas que terminam às 22h e as alunas precisam de organizar para irem até a Central juntas— elas têm medo de violência sexual. As disciplinas eletivas são oferecidas à tarde. Quem da classe trabalhadora pode fazer um curso de 11h às 13h ou de 16h às 18h? A Academia hegemônica não é sensível a essas questões. Seu aluno ser alvo é algo muito sério.

E há quem defenda a meritocracia.

A Conceição Evaristo fala que a gente tem que se perguntar por que é tão difícil para as pessoas negras conseguirem. Eu acho importante o momento em que os alunos levam fotos pessoais para a sala de aula e discutimos família, identidade e projeto. De repente, você percebe que metade da turma só tem foto de si mesmo, porque hoje existe o celular, mas não tem da mãe ou dos avós. Ou ainda quando levam fotos da época de escola e me dizem “eu sou o único na foto que ainda está vivo”. Não é estatística, é ali na sua frente. E esses mesmos alunos, que passam por isso, são diariamente informados de que a universidade não é para eles, que o nível caiu depois das cotas, que vão terminar como balconistas.

Como mudar esse cenário?

Esses alunos precisam de referências para que a universidade faça sentido até o fim. Para mim é importante que os alunos saibam que seus diplomas têm que ter impacto em suas comunidades. A minha expectativa é que, em contato com as coisas que eu crio, elas se reconheçam na sua potência e no seu limite e possam produzir, tornando a Academia menos hostil. Estou dentro de um sistema, e é óbvio que eu dei certo, tanto que estou aqui dando entrevista, mas a questão é como eu opero esse dar certo para que ele não se restrinja só a mim.

Para que outras mulheres negras brasileiras se tornem professoras universitárias e publiquem livros?

A minha militância hoje é sobre epistême negra. De certa forma, o reconhecimento intelectual de mulheres negras avançou bastante. É claro que ainda tem muito racismo e objetificação, mas tem uma demanda por nos ouvir nos espaços do mainstream, muitas vezes porque não tem jeito. É impensável, hoje, uma festa literária sem uma autora negra.

As instituições, de fato, reconhecem as pessoas negras ou têm medo da repercussão?

É um misto. Vamos dizer que se previnem para evitar maiores danos. Um livro como o “O que é lugar de fala?”, da Djamila Ribeiro, estar há 2 anos na lista dos mais vendidos, faz o mercado entender que o pensamento de mulheres negras vende. Assim, cada grupo editorial pega a sua preta e é criada a ilusão de que tudo mudou. Mas quantas mulheres negras brasileiras estão sendo publicadas? Infelizmente, quem está na mesa de decisão nas editoras, feiras literárias e universidades, geralmente, não são pessoas negras.

Você chama os textos de seu livro de escrevivência acadêmica. Por quê?

Escrevivência é um conceito da literatura de Conceição Evaristo, em que ela afirma que você é o texto que escreve. Tenho desenvolvido esse conceito para pensar o trabalho acadêmico e também fazer uma crítica à ideias de conhecimento distanciado e neutralidade. Os textos do livro vêm da vontade de produzir uma linguagem científica mais democrática. Isso vem do meu incômodo em perceber que o discurso acadêmico não é compreendido pela maioria da população. Então passei a questionar como é fazer ciência de uma forma que a minha aluna e a minha avó possam entender.

E chegou até Conceição Evaristo.

O primeiro lugar a que cheguei foi a criação do grupo e da disciplina Intelectuais Negras, sempre levando em conta a situação de desigualdade que vive a população negra brasileira. Assim, trouxemos as histórias e memórias familiares, as relações de afeto com determinados objetos, os cadernos de receitas, os temperos e as relações com práticas religiosas, entre outras coisas. Reuni tudo isso na minha observação de professora e afirmamos que a história das famílias é tão importante quanto “Visões do Paraíso,”de Sergio Buarque de Hollanda. A questão é que determinados pontos de vista são silenciados e invisibilizados. Conceição Evaristo faz pensar sobre a História do Brasil, trabalhando conceitos fundamentais como identidade, memória, formação, humanidade, gênero, raça e classe. E faz isso de maneira poética e profunda. Ela é exemplo de inteligência, generosidade, e humildade subversiva porque não abaixa a cabeça, mas se entende parte do todo.

Você diz que certos pontos de vista foram silenciados e invibilizados. Mas essas mesmas pessoas também foram objetificadas pela ciência.

Sim. Tradicionalmente, a ciência brasileira objetifica mulheres, negros e indígenas. A gente é sempre o outro dentro do padrão branco. O sentido de conhecimento precisa ser plural. A comunidade negra é cientista da vida, veio embarcada em navios negreiros, vestindo trapos e comendo água com farinha. Quem sobreviveu, se reinventou a ponto de eu estar aqui hoje. Numa perspectiva histórica é revolucionário. Apenas 0,4% dos professores na pós-graduação são negros e é preciso que as intelectuais negras se multipliquem. Por isso, eu não estou na academia para ser legitimada pelo script branco. Eu trabalho para produzir conhecimento que seja relevante para quem sempre foi destratado como pessoa.

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