Há 70 anos, Brasil ganhava primeira lei contra racismo

Em 3 de julho de 1951, o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954) promulgou a primeira norma brasileira de combate ao racismo, a Lei 1390, mais conhecida como Lei Afonso Arinos — em referência ao autor do texto, o então deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), jurista e historiador.

Não foi por acaso que a discussão foi levantada e chegou ao ponto de se tornar lei. Um ano antes, a dançarina e coreógrafa americana Katherine Dunham (1909-2006) havia feito uma denúncia a repórteres que cobriam sua estreia no Teatro Municipal de São Paulo: o gerente do Hotel Esplanada, cinco-estrelas luxuoso que funcionava próximo à casa de espetáculos paulistana, havia se negado a hospedá-la depois de constatar que ela era “uma mulher de cor”.

A repercussão não se restringiu à imprensa brasileira, mas repercutiu também em outros países. No dia 17 de julho de 1950, o deputado Arinos apresentou seu projeto de lei — que depois de todos os trâmites, seria aprovado há exatos 70 anos.

Estudioso da temática da população negra no período pós-abolição e professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS), o historiador Petrônio Domingues frisa que esse tipo de constrangimento ocorria com outros artistas negros em turnê no Brasil — a diferença fundamental foi que Dunham, que também era ativista social e antropóloga, denunciou o episódio.

Grande passo, baixa efetividade

De acordo com especialistas ouvidos pela DW Brasil, o maior avanço trazido pela lei foi reconhecer a existência do racismo no país. “No Brasil, o mito da democracia racial sempre se fez presente. E as legislações acompanhavam o retrocesso ideológico”, pontua o jurista Julio César Santos, diretor do Instituto Luiz Gama.

“[A lei] teve um efeito muito importante do ponto de vista da formalização, do reconhecimento do Estado de que existe uma prática discriminatória. Foi a partir dessa legislação que se pôde lutar por outras legislações”, afirma a socióloga Flavia Rios, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

O problema, ressalta ela, é que a lei tinha “baixo impacto”. “Se a pessoa fosse pega num contexto discriminatório, pagava-se uma fiança e ela era liberada. O ‘custo’ da discriminação era baixíssimo”, contextualiza ela. “[Ao contrário de hoje], antes se podia pagar, [o crime] podia prescrever, e a pessoa não era presa.”

O historiador Domingues reconhece que a lei teve o mérito de “tipificar o preconceito racial como crime de contravenção penal” e de “criar a figura jurídica do negro” — mas “o dispositivo legal não teve eficácia na prática”. “[A lei] vigorou de 1951 a 1989, mas são raríssimos os casos conhecidos de processos e condenações com base na lei”, ressalta.

Segundo levantamento realizado pelo historiador e brasilianista Jerry Dávila, foram apenas 23 os casos enquadrados pela Afonso Arinos — sendo que apenas sete resultaram em condenação.

O caso mais notável envolveu uma celebridade televisiva. Em 1980, a jornalista Gloria Maria, repórter da TV Globo, apresentou denúncia contra o gerente do hotel Othon Palace, em Copacabana, no Rio, depois de ter sua entrada barrada por ele, que teria argumentando que “negro não entra no hotel”. O funcionário foi levado para a delegacia — e liberado após pagar fiança.

Coordenadora-adjunta da Comissão da Igualdade Étnico-Racial da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), a jurista Aline Mota atenta para o fato de que a lei se limitava apenas a duas esferas da realidade.

“Apesar de ser um avanço, em certa medida, a lei reduzia o problema a aspectos do direito do consumidor — se negar a vender, hospedar, matricular aluno negro… — e do direito do trabalho — se negar a empregar”, pontua. “Não foram tratados [pela legislação] outros aspectos relevantíssimos, como o direito à terra pela população quilombola, ações afirmativas ou de reparação histórica.”

“Analisando de forma conjuntural, no contexto global a lei poderia ser vista como um atraso”, comenta Santos. “Mas, no Brasil, a legislação foi um avanço, pois em um período em que imperava a cultura eugenista, ou seja, elementos estruturantes dos privilégios da branquitude, os legisladores e formuladores de opinião estabeleceram uma agenda, tratando da temática racial e [implementando] a construção de uma política inaugural de combate ao racismo, prevendo igualdade de tratamento e direitos iguais.”

Depois da Afonso Arinos

Com nove artigos, a lei originalmente previa como contravenções uma série de situações em que a pessoa fosse discriminada “por preconceito de raça ou de cor’. Em 1985, a norma ganhou nova redação, ampliando seu escopo. A partir de então, poderiam ser enquadrados também casos de preconceito “de sexo ou de estado civil”.

Esse instrumento acabou sendo substituído, em 1989, pela Lei 7.716, conhecida como Lei Caó. Sancionada pelo então presidente José Sarney em 5 de janeiro daquele ano, ela havia sido proposta pelo deputado federal Carlos Alberto Oliveira dos Santos (1941-2018), conhecido como Caó, um advogado e jornalista que militava no movimento negro.

“[A Lei Caó] estabelece a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, explica Domingues. “Com a sanção, a lei regulamentou o dispositivo da Constituição Federal [de 1988] que tornava inafiançável e imprescritível o crime de racismo, já que todos são iguais, sem discriminação de qualquer natureza.”

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