AVISO DE GATILHO PARA RACISMO
Quem me conhece sabe que sou naturalmente uma pessoa otimista, que tende a confiar nas boas intenções alheias (até que se prove o contrário). O Brasil vem erodindo esses traços da personalidade ariana, mas de certa forma eles ainda sobrevivem.
Então, quando vi a CBF realizando um mega evento antirracista, com a presença, inclusive, do Deus Gilberto Gil, eu pensei: agora vai. Sob o comando do primeiro presidente negro da entidade, agora vai. Em tempos de enorme cobrança midiática, agora vai. Diante deste compromisso público com a sociedade, agora vai.
Não foi.
Para o seu time de influenciadores que cobrirão a Copa do Mundo, no Qatar, a CBF convidou a podcaster Tata Estaniecki Cocielo, que, em 2018, se “fantasiou” para um Baile da Vogue com um objeto utilizado para tortura de pessoas escravizadas. Ela pediu desculpas depois das inúmeras críticas.
Seu marido, Júlio Cocielo, também entrou para a #NossaSeleça, grupo escalado para ajudar a reconectar brasileiras e brasileiros com a Seleção. No mesmo 2018, o comediante foi processado pelo Ministério Público por racismo.
(Ambos optaram, ontem, por deixar o projeto devido a uma questão do casal, o que não muda o fato de que, feita a vontade da CBF, eles estariam no Qatar representando a entidade.)
Sim, Cocielo acabou absolvido com uma sentença que deprime quase tanto quanto as falas que originaram a ação civil pública. Vamos a apenas três tuítes, entre as dezenas apresentados pela promotoria:
Durante a Copa da Rússia: Mbappé “conseguiria fazer uns (sic) arrastão top na praia, heim?”.
Em 28 de dezembro de 2013: “o Brasil seria mais lindo se não houvesse frescura com piadas racistas. Mas já que é proibido, a única solução é exterminar os negros”.
Em 11 de dezembro de 2013: “gritei VAI MACACA pela janela e a vizinha negra bateu no portão de casa pra me dar bronca.”
Segundo a decisão do juiz Caramuru Afonso Francisco, Cocielo apenas se utilizou da “zombaria de estereótipos”, “inclusive para, dentro do papel social do humorista, levar a sociedade a refletir sobre o ranço discriminatório que ainda existe na sociedade e que precisa ser superado dentro de uma sociedade que se diz fraterna, mas uma sociedade que também prima pela liberdade e que jamais pode compactuar com a imposição do “discurso politicamente correto”.
Chamou de mimimi, basicamente. Autorizou, literalmente, o uso de linguagem racista, sob a justificativa de piada e de que o próprio Cocielo “se hoje faz parte de uma classe social dita alta, por causa do sucesso que alcançou em sua atividade, é, sim, de um histórico nitidamente vinculado à plebe e às camadas onde, normalmente, estão os negros e ditos pardos ou mestiços, em decorrência da própria história do país, o último a abolir a escravatura no Ocidente”.
A coluna ouviu dois expoentes da luta antirracista no Brasil.
Para Marcelo Carvalho, diretor-executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, “a grande questão do debate racial é a pessoa reconhecer o erro, querer abrir o ouvido para entender ‘por que vocês estão dizendo que eu cometi racismo, agora eu vou aprender para não cometer mais o erro’. Desconheço que ele tenha admitido que errou. Em vez disso, se agarra à decisão judicial absurda de que aquilo não era racismo. Toda pessoa merece uma segunda chance, a possibilidade de errar, corrigir o caminho e seguir em frente depois de pagar pelo erro. E aí está a grande questão: reconhecer e pagar pelo erro.”
Um dos primeiros a denunciar o caso, Marcos Luca Valentim, jornalista do Esporte da Globo, comentou: “Dois meses depois desse grande evento de combate ao racismo, a CBF precisava fazer isso? Não existe nenhuma outra pessoa influenciadora no Brasil que possa desempenhar esse papel no Qatar sem ser racista, sem ter tido um episódio racista na vida, sem se utilizar de racismo recreativo? Não pode ser uma pessoa negra nesse lugar? Me parece que aquele grande evento não passou de uma grande representação, em que, no fundo, é melhor não parecer racista do que, de fato, não ser racista.”
Talvez você insista: mas o Cocielo não está tentando redimir-se, tornar-se um cara melhor? É possível. Essa chance, porém, vem às custas da oportunidade para uma outra pessoa, idealmente negra. Sua escolha significa um lugar a menos para alguém não-racista e, no fundo, consolida a mensagem de que essas coisas importam pouco – ou nada. De que o racismo será, sim, tolerado. Dependendo do seu número de seguidores.