Já fui racista. Agora tenho vergonha

Quando tinha 18 anos, costumava estar irritado e errado. Tenho o prazer de dizer que estou menos irritado agora, embora ainda esteja errando muito, muito frequentemente. Infelizmente, essa mistura de raiva e erros levou a algo que não me orgulha. Não é fácil falar sobre coisas que nos envergonham, mas sinto vergonha de uma crença que tinha no passado e acho que ela merece ser discutida.

Por Kyle Sheldrick Do Brasil Post

Uma coisa que me irritava muito era a ação afirmativa, especialmente envolvendo os indígenas australianos. Quando tinha 18 anos, reclamava que os estudantes indígenas tinham seleção preferencial nas faculdades de medicina. Também me incomodava o foco desproporcional do currículo em questões indígenas.

Hoje, me sinto pouco à vontade quando penso nessa posição. Minhas opiniões mudaram. Gosto de pensar que não sou uma pessoa racista e que não discrimino ninguém, por nenhum motivo. Então, como fui capaz de ser tão veementemente contra algo tão positivo? Era racismo?

Bem, eu não via as coisas assim naquela época. Partindo do princípio de que há um número finito de vagas nas faculdades de medicina, eu pensava mais ou menos da seguinte maneira: conceder a um estudante indígena o lugar de um concorrente mais bem qualificado é uma injustiça. Me sentia ofendido pelo candidato que perdeu para um indígena a última vaga disponível. Na minha cabeça, eu estava sendo bastante justo e neutro, afinal de contas não era interesse próprio, certo? Eu tinha entrado na faculdade de medicina na primeira tentativa, portanto não estava pensando só em mim, certo?

Agora percebo que estava errado. Cometi dois grandes erros.

O primeiro erro foi olhar para a ação afirmativa isoladamente. Toda a ação afirmativa é injusta quando considerada isoladamente do problema que tenta resolver. Quando os bombeiros lançam jatos d’água em apenas uma das dez casas da rua, isso parece, e é, injusto – se você não levar em conta o fato de que só uma casa está pegando fogo. É claro que não há controvérsias em torno do corpo de bombeiros. É muito fácil se convencer de que eles estão sendo justos, porque você está vendo que só uma das casas está em chamas. O fogo é claramente visível.

O que eu pensava quando tinha 18 anos era que a seleção para a faculdade de medicina começava em abril do ano anterior. Hoje sei que não é assim – ela começa décadas antes. Mas essa desvantagem não é como o fogo. Não há chamas nem calor. Os estudantes indígenas têm menos probabilidade de terminar o 12º ano, em comparação com os não-indígenas (cerca de metade para os indígenas, contra cerca de quatro em cada cinco para os brancos). Mas você pode não perceber esse detalhe quando está no 12º ano, porque é difícil enxergar o que não está lá. Não há chamas.

Os índices de encarceramento dos australianos indígenas são 24 vezes mais altos que os dos australianos não-indígenas. Mas este dado não é tão debatido porque ser preso é visto como uma coisa moral, uma visão simplista que considera a cadeia simplesmente um castigo para quem é mau. Portanto, há pouca indignação. Não há calor.

Estas e outras desvantagens não deixam de existir quando você se candidata a uma vaga na faculdade de medicina. Os concorrentes não largam do mesmo lugar. Duas coisas me chamam a atenção agora. A desvantagem dos indígenas é tão prevalente que, sem a pressão contrária da ação afirmativa ou portas de entrada alternativas, provavelmente teríamos pouquíssimos médicos indígenas e uma baixa representatividade dos povos indígenas nas faculdades de medicina. Além disso, essa desvantagem significa que um ranking baseado no mérito simplesmente não é baseado no mérito; trata-se de uma combinação de mérito, sorte e desvantagem. Um candidato com pontuação mais baixa talvez não seja menos competente ou menos merecedor de uma vaga.

Agora me dou conta de que a melhor maneira de azedar sua visão da ação afirmativa é olhar para ela de forma isolada. Ignorar o problema faz com que a ação afirmativa pareça injusta. Reconhecê-lo faz com que qualquer coisa aquém da ação afirmativa pareça inadequado.

Disse que cometi dois erros. O primeiro foi o meu entendimento da ação afirmativa. O segundo o meu entendimento de mim mesmo.

Comentei acima que me via como um observador neutro numa disputa entre um estudante indígena de desempenho inferior e um estudante não-indígena que foi preterido. Como não tinha sido prejudicado na seleção, considerava minhas opiniões inteiramente imparciais. Estava completamente enganado.

Sir Terry Pratchett escreveu sobre “primeiros pensamentos” como respostas instintivas, “segundos pensamentos”, como contra-argumentos e “terceiros pensamentos” como os pensamentos que observam os dois primeiros. Meus primeiros pensamentos eram que um estudante indígena tinha tomado o lugar de um estudante não-indígena de desempenho superior. Meus segundos pensamentos foram: “E se esse não-indígena fosse eu?”. Eis o terceiro pensamento que nunca me ocorreu: por que só me coloquei na posição do estudante não-indígena?

Embora tenha conseguido uma vaga, imediatamente me identifiquei com o candidato não-indígena, e não com o concorrente indígena. Minha resposta foi inconscientemente tendenciosa por causa disso. Disse no início que eu gosto de pensar que não sou racista. Parte da razão pela qual fui tão defensivo era que eu considerava a questão potencialmente danosa. Estava cego para os potenciais benefícios – pelo menos em parte porque o que eu considerava como a minha raça. É difícil olha para trás e não concluir que a minha conclusão na época de fato foi racista.

Meu ponto de vista se suavizou e minha perspectiva se ampliou, durante a faculdade (especialmente em relação às vagas reservadas para indígenas) e particularmente depois passar um tempo com Andrew Macdonald, pediatra apaixonado por questões aborígenes. Hoje acredito que o que fazemos em relação à educação médica indígena é não apenas necessário – é insuficiente. Mas isso não muda o desconforto que sinto em relação às minhas antigas opiniões, e a convicção que tinha em relação a elas.

Na verdade, é mais que desconforto. É vergonha, e peço desculpas.

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