Longevidade para poucos

No Brasil, CEP determina a diferença entre envelhecer ou não

A expectativa de vida de brasileiras e brasileiros voltou a aumentar, depois do par de anos de retrocesso em razão da pandemia, que matou 707 mil habitantes, idosos à frente. Nunca é demais lembrar que, houvesse naquele biênio 2020-2021 um presidente da República responsável, cioso das atribuições do cargo, respeitoso com o povo, centenas de milhares dos nossos ainda estariam por aqui. A longevidade avançou no Brasil em todas as décadas desde os anos 1940, até o ponto máximo de 76,2 anos em 2019. Caiu a 72,8 anos em 2021, uma barbaridade. Está agora em 75,5 anos, segundo o IBGE.

O envelhecimento da população é ativo valioso, conquista a ser festejada sob qualquer aspecto. A provar, está a avalanche de celebração pública anteontem, pelos 77 anos de Conceição Evaristo, professora, escritora premiada, referência. Ela costuma contar que começou a escrever aos 40 e a receber reconhecimento público a partir dos 70. Só em novembro recebeu da União Brasileira dos Escritores (UBE) o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano, na Flitabira, em Minas Gerais. Foi aplaudida a céu aberto, enquanto avançava pelo calçamento pé de moleque — e triste memória — da cidade histórica de Paraty (RJ) na Flip. Não me permito esquecer que Clementina de Jesus gravou o primeiro álbum depois dos 60 anos.

Entre os povos originários e comunidades tradicionais, os mais velhos são guardiões da História, dos ritos. São riqueza e memória. Não faz muito, o Ministério dos Direitos Humanos abriu chamada pública para selecionar projetos de cultura e economia sustentável assentados nos saberes dos idosos. As inscrições vão até dia 10, e as propostas não devem ultrapassar R$ 150 mil.

O Brasil se acostumou a narrativas tóxicas que fazem da velhice um fardo para a Previdência, assistência social, saúde. Está nas planilhas da burocracia, mais preocupadas em apontar riscos do futuro que em admitir descasos do passado. É esse legado nefasto que o país precisa superar.

Década após década, enquanto esperança de vida aumentava na média, crescia o hiato entre a longevidade de mulheres e homens no país. A diferença a favor das mulheres, que não chegava a seis anos até 1970, já passou de sete. Mulheres vivem mais que homens, mas no Brasil mortes por causas externas têm acentuado a assimetria. Nos dados mais recentes, a perspectiva de longevidade ao nascer é de 79 anos para elas, 72 para eles.

São acidentes de trânsito e, sobretudo, homicídio de jovens rapazes que têm encurtado a vida dos homens brasileiros. A tragédia se dá, sobretudo, entre os negros. Às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, tornado feriado em todo o país anteontem por votação do Congresso, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública informou que, em duas décadas, 408 mil pessoas pretas ou pardas foram assassinadas no Brasil. Foram sete em cada dez vítimas.

A brutalidade é suficiente para, na pirâmide etária, a partir de 24 anos a população do sexo feminino ultrapassar a do masculino. O mundo real forjado no racismo institucional nega aos homens negros a possibilidade de envelhecer. Por isso é terrivelmente comum ver postagens de celebração do primeiro quarto de século de jovens negros como vitória ou milagre, mais que aniversário. Eles venceram a estatística.

A longevidade é também relativa para pessoas trans no Brasil. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) denunciou ao Ministério dos Direitos Humanos 131 assassinatos em 2022. Pelo 14º ano seguido, o país foi o primeiro em homicídio por ódio ao grupo. Das vítimas, 90% tinham entre 15 e 40 anos, o que sedimenta a expectativa de vida de 35 anos, menos da metade do estimado pelo IBGE.

Num dos blocos de divulgação do Censo 2022, o instituto informou que a população de 60 anos ou mais saltou 56% sobre 2010. Quinze em cada cem brasileiros estão na faixa etária, um total de 32 milhões de habitantes. Também aqui as desigualdades se impõem. Nos estados do Sudeste e, principalmente, do Sul a proporção de idosos e a esperança de vida são maiores que no Norte e no Nordeste. Quando a ONU produziu, na virada do século, o primeiro relatório do desenvolvimento humano para uma cidade, o Rio de Janeiro, uma década separava a expectativa de vida na favela da Rocinha da Gávea, bairro vizinho de alta renda.

No Brasil, CEP determina a diferença entre envelhecer ou não, porque explicita condições de vida, qualidade da habitação e alimentação (em qualidade e quantidade); acesso a educação, saneamento básico e saúde, a bens e serviços; a trabalho e renda, mobilidade e segurança, lazer e cultura, sono tranquilo. O Brasil envelhece, e isso é bom. Melhor será quando longevidade for direito de todos, não privilégio de poucos.

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