Parecia que enfim um autor de novela havia decidido colocar em questão certos temas que oprimem secularmente mulheres apaixonadas ou não; que Manoel Carlos iria, por exemplo, ”meter a colher em briga de marido e mulher” e discutir seriamente o fato de que as mulheres, não raro, são vítimas de homens supostamente apaixonados para os quais as feministas endereçam o seguinte slogan: ”Quem ama não mata, não machuca, não maltrata”! Mas não era simples assim. O ”apaixonado” e ciumento Marcos de Manoel Carlos, transformado em sádico, psicopata, resulta numa aberração envolta numa parafernália glamourizada, com direito a trilha sonora com música clássica, champanhe, raquetes de tênis, jóias caras, gestos e esgares histriônicos cujo efeito é o de deslocar o espancador de mulheres para o território da desrazão ou do inumano e, portanto, situá-lo no âmbito da excepcionalidade.
Por Sueli Caneiro
Destitui-se, assim, a violência contra a mulher da trágica banalidade em que está inscrita no cotidiano pela magnitude e impunidade de que se reveste em que o espancamento é um dos degraus para o femicídio também corrente. Espancadores são, em geral, homens comuns, considerados normais e ajustados socialmente que no ”recôndito” do lar afirmam sua autoridade e poder sobre suas mulheres espancando-as. Transformá-los em loucos é, em primeiro lugar, desrespeito com eles e, em segundo lugar, uma abordagem simplista e ao mesmo tempo maliciosa que soa como atenuante a essa violência. Também não resolve matar o personagem como se anuncia por aí. Espancadores não morrem, ao contrário, geralmente matam. Destino que não desejo sequer à personagem Raquel.
Parecia também que Manoel Carlos iria discutir outro fato de nossa tradição cultural: mulheres, empregadas domésticas, submetidas a relações assimétricas de gênero, raça e classe costumam ser vítimas de assédio e abuso sexual. Mas também, nesse caso, não é tão simples assim. No desenrolar da trama ressurge da cozinha da Casa Grande a mucama lasciva destinava a realizar hoje, como ontem, a iniciação sexual de jovens sinhozinhos. Esse é um dos dois grandes estereótipos permanentemente reiterados sobre as mulheres negras no imaginário social e sobretudo no televisivo. O outro é o da empregada doméstica negra retratada como um ser atavicamente imbuído de servilismo e dedicação canina aos seus patrões como o é a empregada de Helena. A personagem é idiotizada ao ponto de em uma cena ela pedir ao pequeno Lucas, o bastardo adotado pelo pai, que lhe ensine a jogar com ele num brinquedo eletrônico para que ela possa entretê-lo melhor. Lucas, aquele menino prodígio, não deixa, é claro, de fazer referência à incapacidade dela para uma atividade tão complexa.
De outro lado, quando se imaginava que a família interétnica da novela, encabeçada por Tell, Luciana e Pérola seria o mote para um debate sobre o racismo presente nas relações familiares, afetivas e sexuais, o que se tem é, novamente, a versão romantizada de nosso paraíso racial e de elogio à miscigenação, um tento alcançado pelo autor graças ao daltonismo com o qual, providencialmente, ele dotou os personagens da novela. Ah! Mas há também, quase me esqueço, a professora negra que superou o racismo intrínseco de seu pai contra os brancos e pôde então abrir-se para uma relação afetiva inter-racial. Racismo, para Manoel Carlos, quando há, é de negro contra branco. Bingo!
Temos a questão do aborto, que poderia ter sido uma oportunidade para que esse debate se ampliasse na sociedade com todas as nuances que o recortam: dos dogmas religiosos à questão do direito das mulheres para decidirem sobre o próprio corpo, passando pelo problema da incapacidade do poder público de assegurar às mulheres o direito ao pleno acesso à diversidade de métodos contraceptivos, principal condição para oferecer alternativas de contracepção para além do aborto, uma prática que apena as próprias mulheres pelo grau de mortalidade e seqüelas que provoca em nosso país.
No entanto, e não gratuitamente, esse tema é tratado na novela por personagens do ”núcleo do mal”: a oportunista filha da empregada e a patroa elitista para quem o pobre filho está sendo ”vítima” do ”golpe da barriga” pelo ”andar de baixo”. A justaposição do tema do aborto às personagens femininas ”do mal” implica sua condenação a priori. A equação é simplória: mulheres más defendem ou praticam o aborto, as do bem são contra. Muito do mesmo!
Talvez o grande sucesso da novela resida nisso, no que ela reitera dos velhos chavões culturais pelos quais estamos tão condicionados que não resta disposição crítica nem imaginação para transformá-los, seja na realidade, seja na ficção. Até porque os que poderiam ousar ressignificar nosso imaginário parecem seguros de que a permanência no mesmo é sempre garantia de Ibope. Basta apenas adicionar à fórmula um pouco de glamour e algum verniz de atualidade.