Em vários artigos já escritos por mim aqui, tenho apontado como o racismo no Brasil utiliza a via da questão econômica e educacional para imprimir o seu modelo próprio de exclusão racial. Sem uma boa formação – que, em nosso país, custa caro – não há bons empregos. Sem bons empregos, não há bons salários que possam pagar uma boa educação.
E assim tem sido nosso processo histórico de exclusão. Um método extremamente sofisticado e eficiente, que não precisou utilizar leis como as do Apartheid da África do Sul, ou as dos Estados Unidos, para colocar os negros em seus “devidos” lugares nesta sociedade excludente.
Porém, os séculos 20 e 21 tiveram alguns exemplos de experiências que tentaram driblar esse projeto eliminatório por meio da educação.
O primeiro que se tem notícia foi levado adiante pela Frente Negra Brasileira e, nos anos de 1930, chegou até a ter uma escola apenas para negros. Estamos falando de menos de 50 anos após a assinatura da Lei Áurea, quando a questão educacional era um problema mais grave do que nos dias de hoje, em um país predominantemente rural.
Tivemos outras experiências também pouco registradas, e a última e mais conhecida tem sido a da Universidade Zumbi dos Palmares, que surgiu com o objetivo de suprir essa lacuna entre negros e educação, sobretudo no ensino superior.
Todavia, no final dos anos de 1970, 1980 e até 1990, surgiu uma experiência aqui, na Grande São Paulo, ainda pouco estudada, que demonstra o quanto essas questões econômica e educacional têm uma relação forte com o ensino superior para negros.
Naqueles anos, surgiu uma universidade com preços mais acessíveis para quem quisesse cursar o ensino superior, e logicamente atraiu uma parcela significativa de pessoas pretas interessadas em ingressar na faculdade.
A universidade ficava na cidade de Mogi das Cruzes. A logística de transporte da capital era fácil – afinal, era só pegar o trem na estação Brás e descer em Mogi. O trem que parava na universidade era chamado de “trem dos estudantes”.
A identificação racial daquelas pessoas pretas, em que a maioria eram os primeiros da família a adentrar em um curso superior, foi tamanha que logo surgiu um vagão só para o samba. Estavam ali Caçapava e Betinho – filho do seu Nenê, da escola de samba da Vila Matilde – entre outros.
E o vagão do samba, aos poucos, foi crescendo e ganhando identidade. Logo, foi intitulado de Primeiro e, depois, de Terceiro Vagão, um espaço só para pretos, onde conversas, samba e muitos e muitos sonhos foram compartilhados por mais de uma geração de jovens pretos.
Este mês de maio foi marcado pelo segundo encontro dos remanescentes do Terceiro Vagão. Tempo não só para recordar aquela ousadia de fazer um vagão só para pretos, mas também para atualizar e revisar os sonhos.
“Muitos deram grandes saltos na carreira, demonstrando, na prática, que a educação, seja ela onde for, ainda é chave para a ascensão social do negro”, ressalta Gil Marcos, que se formou em economia na primeira turma do Terceiro Vagão, e hoje preside o Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo.
Para a advogada Jane Costa, que se formou em direito na década de 1980 e, depois, por mais de 20 anos, trabalhou no Ministério do Trabalho, “o Terceiro Vagão foi uma experiência estudantil, recreativa e de ruptura negra para os padrões educacionais da época”.
A reunião de maio também foi palco de lembranças daqueles que ficaram pelo caminho, ou que já se encontram no andar de cima, como Alberto Alves, o Betinho da Nenê, que era a maior promessa política do grupo. Além de presidir a escola de samba criada pelo pai, Betinho também chegou a comandar a Companhia de Habitação (Cohab) de São Paulo.
O final do encontro foi marcado pela apresentação de um dos criadores do Terceiro Vagão, Caçapava, que, ao lado da companheira, e vocalista do grupo Clube do Balanço, Tereza Gama, comandou o samba como nos velhos tempos, mostrando que samba e educação caminham juntos. Um encontro que acabou no samba, mas começou com educação.