De todas as formas de desigualdade, a injustiça na saúde é a mais chocante e a mais desumana.
Martin Luther King
A dor é uma experiência desagradável a que todos os animais humanos e não humanos estão sujeitos. Ela serve a um propósito útil: alertar sobre uma ameaça e enfatizar a necessidade de cuidado. Nesse sentido a dor é preciosa, dura pouco e desaparece depois que o evento que a suscitou é tratado e o corpo sara. Porém, quando ela se torna persistente, não há nada de precioso nela; ela é apenas uma experiência desagradável, para a qual esperamos ansiosamente o alívio. Embora muitas pessoas vivam com dor persistente, não precisamos nos conformar com ela, sem antes aprender a variedade de formas farmacológicas e não farmacológicas de tratá-la.
Devido ao caráter presentista e universalista da dor, informar-se sobre ela e aprender a lidar com ela é de interesse coletivo. É universalista por ser um problema sério de saúde pública em todos os países, atingindo desproporcionalmente aqueles de média e baixa renda. Estimativas da Organização Mundial da Saúde preveem que até 2030 a dor crônica será uma das comorbidades importantes entre as quatro principais causas de carga global de doença (Ho, Anita et al.). É presentista por constituir um fardo para pessoas (e seus familiares) de todas as idades, gêneros, raças/etnias com menor condição socioeconômica e em empregos que exigem força física.
Há 22 anos, esse cenário, que ainda é atual, levou um conjunto de organizações lideradas pela American Chronic Pain Association – ACPA a instituir o mês de setembro como o Mês de Conscientização da Dor. O propósito dessa ação é sensibilizar e aumentar, na sociedade, a consciência sobre as novas descobertas sobre dor e os problemas relacionados com ela, melhorar a qualidade do e o acesso ao tratamento e incentivar a construção de redes de apoio para as pessoas que lidam com ela cotidianamente.
A relevância de conhecer e se envolver no processo de conscientização da dor persistente se deve ao fato de se tratar, como referido acima, de um daqueles temas que interessa não só aos profissionais de saúde e a quem a sente, mas a todas as pessoas, visto que dor é uma experiência da existência humana e está presente nas doenças crônicas que mais causam mortalidade como: diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, traumas. Nesses casos, pode-se considerar a dor como sintoma de uma doença; no entanto, esse é só um lado da moeda. Como bem afirma o pediatra Elliot Krane, em sua apresentação no Ted Talk em 2011, a dor é uma doença em si quando persiste mesmo depois da recuperação do evento que a causou e dura por mais de três meses ou se estende por anos. Quando isso acontece, a dor é a própria doença e tem que ser tratada para reduzir seu impacto na qualidade de vida das pessoas que a sentem. A dor persistente limita o corpo em sua mobilidade, na realização de tarefas rotineiras, incapacidade para o trabalho. Também afeta a saúde mental, ao desencadear transtornos de humor, como depressão e ansiedade; afeta a vida social, levando ao isolamento, ao sentimento de ser incompreendido pela família, no trabalho e por profissionais de saúde. Como se vê, a dor constitui um fenômeno interativo que orienta as relações sociais em diferentes âmbitos e tem implicações estruturais na dinâmica social (culturais, políticas e econômicas). Isso valida a ideia de que, tomada como objeto de análise, a dor também ajuda a apreender os conceitos de humano e sociedade vigentes. Dado que em nossa sociedade populações historicamente afetadas pelas desigualdades sociais são expostas à falta de acesso ou ao acesso inadequado ao tratamento da dor, configurando um cenário de sofrimento social, se faz imperativo que governos, instituições e profissionais de saúde e familiares reconheçam a necessidade de aliviar a dor e o sofrimento de quem a sente.
Aliviar e tratar a dor é, portanto, um direito humano fundamental, como bem promulgou a Declaração de Montreal, formulada em 2010, por ocasião do XIII Congresso Mundial sobre Dor da IASP – Associação Internacional para o Estudo da Dor, por médicos e pesquisadores representantes de 62 países. Para conhecer a declaração na íntegra deixo o link da Declaração de Montreal traduzida pela Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor; vale a pena conferir. Além de um direito humano fundamental, o tratamento da dor é uma questão de justiça social, ou seja, todas as pessoas devem ter, não só direitos, mas também oportunidades econômicas, políticas e sociais que permitam acessar o tratamento da dor em termos de igualdade e equidade. Enquanto profissional de saúde, tive um exemplo desse processo ao ser apoiada pelo Fundo Baobá no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras – Marielle Franco para realizar uma formação qualificada para a tratar a dor e ampliar os serviços que presto neste campo.
Referências:
1-Declaração de Montreal. Disponível em: https://iaspfiles.s3.amazonaws.com/production/public/2021/Brazil_Portuguese_Translation_Dec_of_Montreal.pdf. Acesso em 02/08/2019.
2-Ho Anita, Nair Shrijit. “Chapter Nine – Global Chronic Pain: Public and Population Health Responses”. Developments in Neuroethics and Bioethics, v. 1, p. 171-189, 2018. Disponível em https://www.sciencedirect.com/ science/article/pii/S2589295918300092. Acesso em 02/08/2019.
3-IASP – Declaração de que o tratamento da dor é um direito humano fundamental. Disponível em: https://www.iasp-pain.org/advocacy/iasp-statements/access-to-pain-management-declaration-of-montreal/ Acesso em 02/08/2019.
4-Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor https://sbed.org.br/ wp-content/uploads/2019/01/CAMPANHA-NACIONAL-PELOTRATAMENTO-E-CONTROLE-DA-DOR-AGUDA-E-CR%C3%94NICA-3- MB.pdf . Acesso em 15/08/2019.
Ted Talk : O mistério da dor crônica – Elliot Krane disponível em: https://www.ted.com/talks/elliot_krane_the_mystery_of_chronic_pain?language=pt Acesso em 02/08/2019.
*Evânia Maria Vieira – bacharel em sociologia, terapeuta integrativa em mindfulness aplicado à promoção da saúde pela Unifesp e pós-graduada em dor pelo Hospital Albert Einstein.
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