Monique França: A médica de família que luta contra o racismo na saúde

Aos 29, médica atende em unidade de favela no Rio e homenageia as mulheres negras que vieram — e lutaram — antes dela para que ocupasse seu lugar.

Por Lola Ferreira, do HuffPost Brasil 

VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL
A escolha da Medicina de Família, para Monique França, é uma prova de resistência.

“Você não sabe o prazer que é entrar nesta sala e ser atendida por você. É bom ver a gente onde você está.” Essa frase a médica Monique França, 29, ouviu de uma paciente idosa durante seu expediente em uma unidade pública de saúde dentro de uma favela do Rio de Janeiro. Toda a sua trajetória de acesso e permanência no curso mais concorrido do País culminou com a escolha da especialização em Medicina de Família e Comunidade. Para Monique, foi quase natural a escolha de uma área da medicina que age primordialmente para compreender os efeitos externos que afetam internamente uma pessoa.

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade define a especialidade como aquela com atuação no âmbito da atenção primária à saúde que prioriza a pessoa (e não a doença). Dessa forma, Monique e seus colegas de área valorizam acima de tudo a relação médico-paciente e desenvolvem “ações integradas de promoção, proteção, recuperação da saúde no nível individual e coletivo”.

Para Monique, “a escolha por Medicina de Família vem do tentar um outro jeito de olhar a pessoa”. E completa: “Essa possibilidade de uma nova medicina é para mim, como mulher negra, um papel de resistência e de representatividade consciente. Não é só estar ali, é entender por que estou ali e o que posso fazer desse meu lugar”.

Essa possibilidade de uma nova medicina é para mim, como mulher negra, um papel de resistência e de representatividade consciente.

Monique decidiu ainda criança que queria ser médica. Com uma infância marcada por vários problemas de saúde, principalmente respiratórios, ela queria ajudar os outros como era ajudada pelos médicos. O episódio definitivo para influenciar na decisão ainda é nítido na memória, mas não foi positivo.

“Quando criança, eu vivia muito resfriada, e era ruim ficar assoando o nariz o tempo todo. Então uma vez eu peguei papel higiênico, enrolei e coloquei no nariz para parar de escorrer. Minha mãe não viu, e o cheiro ficou muito ruim. Aquilo infeccionou dentro do nariz e tive que tirar, óbvio, mas não parava quieta: era uma criança e aquilo doía. Então a médica me deu um tapa. E eu lembro até hoje da situação: eu sentada na cadeira e tomando um tapa da médica. E eu tive certeza que queria ajudar as pessoas, mas que não precisava ser daquele jeito. Eu podia tentar alguma forma de fazer melhor”, relembra.

Chegar até o diploma e fazer melhor não foi fácil. Dizer que a médica é filha de mãe negra, empregada doméstica, e de pai nordestino, motorista, é fundamental para contextualizar as dificuldades enfrentadas pela família durante a caminhada rumo ao diploma universitário.

A universidade é um projeto de vida, de ascensão social, não é só mais uma etapa.

Foto: VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL
A universidade tem um valor especial para a médica Monique França: o da ascensão social.

Monique morou na Cidade de Deus, favela do Rio, durante maior parte da sua vida. Era de lá que a mãe dela partia rumo às mansões da Barra da Tijuca e da zona sul carioca para trabalhar na casa de poderosos milionários. Foi com o dinheiro desse trabalho que criou a filha. O contato com um mundo bem diferente do que via nas ruas da Cidade de Deus era o suficiente para a mãe de Monique saber a dificuldade que é tentar o curso de medicina quando se é pobre. Mas, em nenhum momento, desencorajou a filha.

A médica conta que hoje ela entende quão disputado é o vestibular para o curso que escolheu, mas na época não sabia nada disso: só perseguia seu sonho. No fim do ensino fundamental, a mãe questionou se ela realmente gostaria de seguir pelo caminho da medicina, e ela respondeu que “óbvio”, como se fosse um caminho natural. Hoje ela entende que não.

“A universidade é um projeto de vida, de ascensão social, não é só mais uma etapa da vida. Não é natural, é um processo de resistência e de alcançar outros lugares”, explica a médica.

Com a decisão, e com o ensino médio batendo na porta, Monique escreveu cartas para todos os colégios com os melhores conceitos do Rio de Janeiro. Conseguiu a resposta de um só, e não era definitiva: era um convite para fazer a prova de seleção, e quem sabe conseguir uma bolsa. Uma professora dela na época avisou: “meus filhos estudam nesse colégio, acho difícil conseguir bolsa lá”. Estava errada. Monique foi a 10ª colocada entre os 200 estudantes que queriam acesso ao colégio, e a maioria deles nem pleiteava uma bolsa de estudos. Conseguiu a sua, e depois de terminar o ensino médio, também conseguiu estudar em um curso preparatório para o vestibular.

Foto: VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL

A estrutura faz que você se sinta um peixe fora d’água, meio maluco, por falar certas coisas.

Monique ingressou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, depois de 4 tentativas, pela política de cotas, recém-instaurada. E foi na trajetória dentro dos altos prédios da UERJ que ela ficou face a face com o racismo institucional na área que escolheu tantos anos antes. Peregrinou pelos movimentos estudantil e feminista, mas percebeu que as agruras enfrentadas diariamente resultava da soma de vários fatores: ser mulher, pobre e negra, em consonância.

“Em uma situação, o professor colocou a mão no meu seio quando foi falar sobre ‘coração’. O feminismo vai dizer que é machismo. Mas para mim é além do machismo: é o entendimento de que esse corpo [negro] pode ser violado. É difícil até para eu entender isso, mas havia 4 mulheres no grupo, por que logo eu?”, analisa.

No início do curso, Monique queria ser pediatra: “Eu queria mostrar para a família que se ela fosse uma boa família, a criança ia ficar bem”. Mas na Medicina de Família e Comunidade, descobriu que poderia acessar e atender toda a família ao mesmo tempo. E levou a discussão do racismo para os atendimentos, claro.

“Quando o paciente é negro, o mundo se abre. A sociedade medicaliza muito os adoecimentos que são de alma e de ambiente. Às vezes o paciente está sem dormir mas é por causa dos tiroteios que ouve todas as noites. Tem pessoa que chega com mil problemas, mas desabafa, chora e depois some: ela só queria falar. Mas se ela fosse em outro médico, ia receber um monte de remédios — porque realmente essa pessoa tem dor, as dores da alma refletem no corpo — e não iria resolver”, afirma.

A sociedade medicaliza muito os adoecimentos de alma, de corpo, de ambiente.

Mesmo com a patente importância da Medicina de Família, alguns expoentes da comunidade médica ainda enxergam os profissionais com preconceito. Monique credita essa segregação ao elitismo que ronda a medicina.

“Quando a gente age, muda uma trajetória de adoecimento que é enriquecedora para uma elite. A partir do momento em que um paciente chega até mim em um estágio inicial de diabetes ou hipertensão, ou antes disso, eu consigo aconselhá-lo a melhorar a condição de saúde e de vida. A medicina afirma que a questão genética é superior [na hipertensão ou diabetes], mas para mim é uma forma de racismo, porque determina que não tem como resolver, não tem como mudar. É muito mais fácil creditar à genética do que realmente abrir os olhos para questões sociais que perpetuam essas doenças”, opina a médica.

Ela acredita que as políticas de acesso ao ensino superior instauradas nos últimos anos permitem que pessoas de baixa condição socioeconômica, negras e brancas, estejam naquele espaço elitista e exerçam a medicina de uma forma mais acolhedora. Apesar das dificuldades, já que “a estrutura faz com que você se sinta um peixe fora d’água, meio maluco, por falar certas coisas”, segundo Monique.

O sentimento de parecer que “só você está se importando” moveu a médica a auxiliar na criação do Negrex, um coletivo de médicos e estudantes de medicina negros. Hoje há 400 pessoas no Brasil inteiro que pertencem ao coletivo e discutem questões relacionadas a racismo e saúde da população negra. Na área médica ainda é um desafio.

“Se você for falar de racismo na saúde para duas ou três gerações anteriores, vão te dizer que não existe isso porque são todos iguais. Mas se tratam todos iguais, não estão tratando certo, porque as pessoas não são iguais. O SUS tem um princípio que é a equidade: dar mais para quem precisa mais. Você precisa ter equidade se não acaba negligenciando. Você pedir para alguém tomar um remédio e não entender se ele tem água para tomar o remédio, se ele sabe ler a receita, se ele tem ou não condição de ter a alimentação correta, você está fazendo errado. O protocolo não preenche a vida das pessoas nem age na totalidade da vida delas. O coletivo tem a potencialidade de mudar a estrutura da academia”, afirma a cocriadora do Negrex.

Monique França: A médica de família que luta contra o racismo na saúde (Foto: VALDA NOGUEIRA/ESPECIAL PARA HUFFPOST BRASIL)

Passos foram dados muito antes para que eu chegasse aqui: da minha mãe, da minha avó e de toda a população negra.

Junto com o Negrex, Monique quer pavimentar a estrada para as próximas gerações de médicos e médicas negras. Para exemplificar, ela conta a história antiga de um senhor que cultivava uma tamareira. A lenda conta que na antiguidade a árvore demorava décadas para dar os primeiros frutos, e um senhor foi ridicularizado por um jovem. “Se você não vai colher, por que precisa cultivar?”, ele questionou. E o senhor respondeu: “um dia eu comi tâmaras, e quero que outras pessoas possam comer também”. Para Monique, é este o sentimento que move o coletivo: todos estão comendo tâmaras hoje e querem que outras pessoas façam o mesmo no futuro. Com maior facilidade e sem enfrentar tantas dores.

“Quando alguém entra [na unidade] e me reconhece naquele espaço como alguém que alcançou um patamar que é muito difícil para a população negra em geral, eu sinto felicidade e gratidão. Gratidão porque passos foram dados muito antes para que eu chegasse ali: da minha mãe, da minha avó e de toda a população negra, de todas as mulheres negras que lutaram para a gente sair de uma estatística e entrar em outra muito melhor. É uma mudança de realidade muito forte”, encerra.

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