Em uma das cenas do filme “Hotel Ruanda” (2004), o personagem principal, Paul Rusesabagina, comemora ao ver o genocídio no país da África central exibido na televisão -assim, o mundo saberia do horror e interviria.
Vinte anos após a matança de ao menos 800 mil pessoas da etnia minoritária tutsi pela maioria hutu, o verdadeiro Rusesabagina não exibe o mesmo otimismo. Diz que o mundo não aprendeu nada com Ruanda e que outros genocídios podem ocorrer no futuro, inclusive em seu país.
Shannon Stapleton/The New York Times
O ex-gerente e hoje ativista Rusesabagina, que inspirou o filme ‘Hotel Ruanda’, em 2004
“Tivemos o genocídio armênio, o Holocausto, os massacres em Ruanda e outras partes da África. Hoje, é a vez do Iraque, da Síria. O mundo fecha os olhos e vira as costas, como se não lhe dissesse respeito”, diz Rusesabagina em entrevista à Folha.
“Constato que a história se repete e nunca se faz nada. A cada nova matança, o mundo diz ‘nunca mais’. Será que quer dizer isso mesmo?”
Em abril de 1994, o hutu Rusesabagina era gerente de um hotel de luxo na capital, Kigali, quando defensores da ideologia extremista Hutu Power tomaram o poder e botaram em prática um plano genocida contra os tutsis.
Em três meses, um décimo da população do pequeno país, do tamanho de Alagoas, foi assassinada, boa parte a golpes de machete. Hutus que se negassem a “fazer sua parte” também eram alvos.
Com subornos a membros do governo e das milícias, Rusesabagina manteve a salvo 1.268 pessoas, inclusive sua família. Ele nega se ver como um “Schindler ruandês”: “Sou um homem comum que fez o que deveria ser feito”.
Editoria de Arte/Folhapress
Enquanto o genocídio ocorria, a maioria dos países do Conselho de Segurança se opunha a enviar tropas e ampliar os poderes do pequeno efetivo da ONU em Ruanda.
“Era um genocídio fácil de interromper; matava-se com machetes e lanças. Mas a comunidade internacional preferiu fugir e abandonar uma nação nas mãos de gangsters”, diz Rusesabagina.
Para ele, a culpa pelo massacre é compartilhada entre os antigos colonizadores belgas, que reforçaram as diferenças étnicas dentro da tática de dividir para conquistar, e os próprios ruandeses.
“Vimos os belgas medirem nossos narizes e dizerem que hutus não eram tão elegantes e inteligentes como tutsis. E fomos nós, ruandeses, que aceitamos pegar machetes e massacrar nossos amigos.”
Vivendo em Bruxelas com a família desde 1996, Rusesabagina diz que já sofreu um atentado e teve a casa atacada. Foi acusado pelo governo ruandês de financiar rebeldes hutus, o que nega. Teme voltar a Ruanda, onde pisou pela última vez há dez anos, antes do lançamento do filme.
“Percebi que o filme criaria alguém que pareceria um herói e que o governo ruandês não iria gostar, principalmente por ser hutu. Fui mostrar Ruanda a meus filhos, que deixaram o país muito pequenos. Voltamos à Europa e nunca mais retornamos.”
‘PERÍODO DE VINGANÇA’
Após o sucesso do filme, o ex-gerente de hotel criou a fundação Hotel Rwanda Rusesabagina. Ironicamente, a entidade denuncia o atual governo de Ruanda, chefiado pelo tutsi Paul Kagame, ex-líder dos rebeldes que derrubaram os genocidas hutus.
Para Rusesabagina, Kagame, no poder há 14 anos, chefia uma “ditadura sem precedentes”. Ele diz que o governo persegue e mata opositores, espiona exilados e viola direitos humanos. “As duas últimas décadas foram um período de vingança. Vimos o outro lado da moeda.”
Ele chama o tribunal internacional criado para julgar o genocídio de “catástrofe” e aponta casos de estupros e execuções sumárias de hutus no país, denunciados em 2007 pela Human Rights Watch.
Embora não aponte na violência contra hutus o mesmo planejamento genocida de 1994, Rusesabagina propõe uma comissão de justiça e reconciliação nos moldes da África do Sul pós-apartheid.
Para ele, a comissão também deve reconhecer crimes contra a humanidade praticados pelos tutsis, como a morte de milhares de refugiados hutus na vizinha República Democrática do Congo.
“Ruanda é um vulcão adormecido que pode explodir a qualquer momento. Enquanto a justiça não for feita, o país nunca terá paz”, afirma.
Fonte: Folha