A musicalidade negra como resistência

Há mais de 500 anos, todo o saber negro foi, violentamente, sequestrado da África. Transformados/as em mercadoria, homens e mulheres africanos/as foram escravizados/as, violentados/as, invisibilizados/as nas Américas para o enriquecimento da Europa.

por Maíra Neiva Gomes no História Incomum

Esses/as homens e mulheres tinham todo o conhecimento sobre o trabalho em agricultura e mineração, que desenvolveram ao longo de milhares de anos. Mas, além de ser a eles/as negada a condição de seres humanos, dignos/as de respeito, todo seu saber acumulado foi apropriado pelos colonizadores-escravistas.

Para sustentar a desumana estrutura escravocrata foi construída uma imagem social de que o/a negro/a eram seres pré-humanos, irracionais, violentos/as e que deveriam ser controlados/as. Essa imagem ainda é forte socialmente e é sob esse olhar preconceituoso que a cultura negra é analisada e segregada.

A musicalidade é um dos instrumentos mais fortes da cultura afro. Desde antes da escravização, ainda na África, músicas marcavam o tempo de trabalho coletivo e era o meio de passar todo o conhecimento para outras gerações.

Como elemento cultural de formação da identidade africana, a musicalidade também foi um dos mais importantes instrumentos de resistência à escravidão. Nas plantações de algodão dos Estados Unidos, nas lavouras de cana-de-açúcar do nordeste brasileiro ou nas minas subterrâneas do sudeste do Brasil as músicas cantavam planos de fuga, estratégias de sobrevivência de Quilombos e sonhos de volta à liberdade na amada África.

Enquanto tambores, beatbox, capoeira e danças divertiam os senhores de escravos, a cultura africana foi tolerada. Mas o fim da escravidão representou outra violência que perdura até os dias de hoje: a violência cultural.

A musicalidade afro – nos Estados Unidos – embalou o Movimento pelos Direitos Civis e fim da segregação racial nos anos 1950. E da resistência negra nasceu o rhythm and blues, o soul, o rock and roll, o rap, o hip hop.

“Como elemento cultural de formação da identidade africana, a musicalidade também foi um dos mais importantes instrumentos de resistência à escravidão”

No Brasil, também foi a musicalidade de raiz africana que forneceu os mais belos elementos da cultura de resistência brasileira, desde as trovas nordestinas, forró ao samba, rap, hip hop, funk e tantos outros estilos musicais marcados pela presença de elementos milenares de identidade afro.

Porém, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, países cujas elites europeias mais se beneficiaram com a exploração do trabalho escravo africano, o/a negro/a continua em uma escala inferior de cidadania e acesso a direitos.

Ao/À negro/a ainda é associado/a a imagem de violência e irracionalidade. Além da segregação espacial urbana – favelização-, afrodescendentes ainda possuem acesso limitado e precário ao ensino e melhores condições sociais. E toda a nossa ancestralidade e cultura é transformada, de forma preconceituosa, em símbolos de violência.

Os ataques às religiões afros demonstram esse dolorido processo. Mas, para, além disso, é construída socialmente uma imagem que vincula o/a negro/a a criminalidade e justifica o encarceramento e o extermínio em massa, pelo Estado, da população afro. Não é à toa que a cada vinte e três minutos, um jovem negro/a é assassinado no Brasil.

Um dos instrumentos mais poderosos do Estado Racista para justificar esse massacre é a criminalização da cultura negra e, assim, impedir que a musicalidade continue sendo o maior veículo de resistência afro.

O samba e a capoeira, os mais celebrados elementos culturais brasileiros, já foram considerados crime. Desde os tempos do Império – antes da Independência – praticantes de capoeira e sambistas deveriam ser presos, por praticarem “vadiagem” ou “não tomar uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, não tendo renda suficiente”.

Atualmente, o “delito” vadiagem, está previsto no art. 59 do Decreto Lei nº. 3.688/41 e prevê pena de prisão de quinze dias a três meses.

Vadiagem é a vida errante, ociosa, sem trabalho a um patrão fixo. É considerada, pelos “especialistas”, como um modo de vida ameaçador à ordem social, uma espécie de estado de perigo constante aos “bons costumes”, sendo estes “bons costumes” definidos pelos próprios brancos detentores de poder. Sustentam esses tais “especialistas” que é pela vadiagem que os indivíduos são aliciados para o crime.

Apesar de todas as lutas sociais contra a discriminação racial, praticada por indivíduos e pelo Estado, a cultura negra ainda é enxergada como uma espécie de crime. E essa interpretação justifica o ataque cotidiano do aparato militar do Estado Brasileiro às comunidades e aos bailes funk.

Sem direito de organizar suas próprias festas, que geram trabalho e renda nas comunidades, além de fortalecerem a autoestima negra e descreverem a realidade do dia-a-dia nas favelas, artistas, organizadores/as, frequentadores/as de bailes funk estão sendo presos, assassinados e silenciados pelo Estado.

Foto: Pedro Castro

Diante disso, surgiu o Observatório da Violência aos Bailes Funk um coletivo independente que visa defender a cultura afro, o direito ao trabalho, à identidade e à autoestima. Nossa intenção é ser um canal de voz dessas pessoas marginalizadas e exploradas e fortalecer a defesa da cultura popular e o direito à livre manifestação.

* Maíra é Mestra e Doutora em Direito pela PUC Minas, Advogada Popular e Professora Universitária.

+ sobre o tema

Livro aborda influência da cultura africana no vestuário do brasileiro

Obra tem coedição da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), em...

Cineasta e roteirista Joel Zito Araújo fala na ABL sobre ‘O negro no cinema brasileiro’

O Cineasta, roteirista e produtor Joel Zito Araújo faz na Academia...

16ª Festa do Divino Espírito Santo no Cachuera

De 9 a 26 de maio de 2015 acontece...

para lembrar

Criolo apresenta ao mundo a ‘humanidade’ da sua música

Neste episódio da série da BBC que revela os...

Morrem dois membro do grupo The Temptations em menos de 15 dias

Um segundo membro da lendária banda de música...
spot_imgspot_img

Reação de IZA ao saber de indicação ao Grammy Latino viraliza na web

Após ser indicada ao Grammy Latino 2023 na categoria Melhor Interpretação Urbana em Língua Portuguesa pela música Fé, IZA viralizou nas redes sociais, nesta terça-feira (19), após aparecer em um vídeo...

Sesc Belenzinho recebe a cantora Maíra Baldaia

O Sesc Belenzinho recebe a cantora Maíra Baldaia no dia 23 de setembro, sábado, no Teatro, com ingressos de R$ 12 (Credencial Sesc) a R$ 40 (inteira).  O show apresenta canções do último álbum lançado OBÍ, que...

Filme sobre Claudinho e Buchecha é pré-indicado ao Oscar 2024

A Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais anunciou, nesta terça-feira (5/9), a lista com os seis longas-metragens pré-selecionados para concorrer a uma vaga...
-+=