Não há racismo em terra de brancos

por Pablo Vilhaça em Diario de Bordo

As mãos, todas brancas, empurram os microfones diante do rosto do homem negro, alto e coberto de suor. Durante os últimos 90 minutos, enquanto desempenhava seu trabalho de maneira eficiente em campo, salvando seu time em ao menos duas ocasiões de particular perigo oferecido pelo time adversário, ele fora atormentado por vaias contínuas partindo da torcida rival. Estava acostumado a vaias, que faziam parte do esporte – mas aquelas obviamente atravessavam a fronteira da provocação de partida, já que se mostravam contínuas e endereçadas não aos companheiros, mas a ele.

Frustrado, percebeu que era tratado como vilão de uma narrativa na qual deveria ser a vítima em um extremo e herói no outro – lá, por ter enfrentado o mais ultrapassado e odioso preconceito; aqui, por ter erguido a voz a protestado contra este.

Nascido e criado em um país populado por pessoas que se orgulham em dizer que ali não há racismo, ele crescera constatando a mentira desta afirmação. Nas periferias, os tons escuros de pele dominavam; nos bairros enriquecidos, a brancura dos habitantes era o padrão. Nas faculdades, a proporção entre brancos e negros era diametralmente oposta à da população do país, como se os portões da instituição funcionassem como um filtro de raça. Ao mesmo tempo, as tentativas governamentais feitas para corrigir as injustiças históricas eram recebidas com protestos pelo mesmo estrato da sociedade que já se via beneficiada por séculos de dominação – e a irracionalidade dos argumentos ia do inacreditável “Nunca tive escravos; por que devo pagar pelos erros de pessoas que viveram há 200 anos?!” ao desonesto “As cotas raciais são uma forma inversa de preconceito”, que convenientemente ignorava a impossibilidade de massacrar, pela intolerância, qualquer um que tivesse que se preocupar com filtros solares com fator 50.

É fácil afirmar que não há preconceito quando não é você que é parado pela polícia apenas por andar na rua à noite, visto com desconfiança por um desconhecido que atravessa a rua para evitá-lo sem razão aparente ou atacado por gritos que o comparam a um primata irracional.

Finalmente farto e coberto de cicatrizes provocadas por anos e anos de punhaladas verbais, ele havia erguido a própria voz e protestado. Não era sua intenção personificar a acusação, já que o racismo, ele bem sabia, era um fenômeno coletivo, mas a imprensa, com sua necessidade contínua de criar narrativas dramáticas a partir de qualquer situação, havia elevado uma garota flagrada pelas câmeras à posição de antagonista do herói. Isto, ele reconhecia, era prejudicial por sugerir que o preconceito era algo limitado a alguns indivíduos, o que permitia que a sociedade, como um todo, evitasse se olhar no espelho e pudesse negar um problema antigo e tristemente disseminado por todas as camadas econômicas e culturais. Para piorar, a irracionalidade da garota fora confrontada com a irracionalidade daqueles que encaram o justiçamento como corretivo, em vez de como o crime que representa por si só – e as ofensas atiradas na direção da moça (“vadia!”, “puta!”) não só encerravam seus próprios e terríveis preconceitos como ainda se tornavam ainda mais graves em função de ações extremas como apedrejamentos e tentativas de incendiar o lar de seus pais.

Como se não bastasse, as ações destes criminosos travestidos de justiceiros respingaram sobre a vítima inicial, que passou a ser culpada por – vejam só – denunciar os ataques que sofrera.

Negando-se a espetacularizar ainda mais um incidente que nada tinha de espetáculo – mas tudo de trágico e doloroso -, ele se recusou a protagonizar cenas novelescas de redenção ao lado da garota que o ofendera em meio a uma multidão de racistas que permaneciam impunes e, com isso, passou a ser acusado de estrelismo e intolerância (uma tática repulsiva de equiparar o que não se equipara).

E agora, ao retornar ao palco dos ataques que haviam originado toda a polêmica, era atacado pela mesma torcida da qual as ofensas racistas partiram inicialmente – desta vez, com vaias contínuas, como se ele, por se recusar a aceitar mais uma ofensa em meio a todas que o acompanharam ao longo da vida, houvesse criado um inconveniente terrível ao estragar a festa dos que negam viver num país racista.

Olhou para os repórteres brancos à sua frente, que representavam uma mídia branca em uma sociedade cuja economia era dominada por brancos e ouviu mais uma vez uma pergunta em tom acusatório: “As vaias não são normais?”.

Por alguns segundos, ainda acreditando ser possível trazer bom senso a um debate que se fazia cada vez mais urgente, tentou apontar que aquelas vaias, em sua intensidade e direcionamento, não eram as mesmas que costumeiramente acompanham uma partida de futebol. Sem sucesso. Cansado, indagou à repórter branca que insistia na pergunta se esta concordava com o que havia ocorrido na partida anterior.

“Eu não tenho que concordar”, foi a resposta evasiva e absurda que substituiu a que seria a única aceitável: “Não, claro que não concordo. Que ser humano decente concordaria?”.

Consciente de estar discutindo com alguém cujo único propósito era arrancar uma resposta polêmica que rendesse manchetes e pageviews aos seus patrões brancos, o sujeito se afastou, enojado.

E, no dia seguinte, se descobriu como o vilão da história na qual nascera vítima.

Nada de novo em sua vida.

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