Não iluda os alunos negros

Uma civilização que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu funcionamento suscita é uma civilização decadente. Uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma civilização enferma. Uma civilização que trapaceia com os seus princípios é uma civilização moribunda.

          ‒ Aimé Césaire

Em uma das passagens da obra Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, a intelectual antirracista e feminista, bell hooks¹, escreveu o seguinte comentário de um dos seus alunos “Nós fazemos seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo e a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida.” Os alunos que testemunharam o desabafo do colega, concordaram. E essa passagem sugere que uma das particularidades da prática docente de bell hooks, acima de qualquer expediente emocional que pudesse provocar nos estudantes, era a construção de um olhar crítico sobre a realidade.

Aproveito esse exemplo para chamar a atenção de todos envolvidos na construção do conhecimento, independente da área que lecionam. Nesse mundo de acentuada violência, um dos desafios dos professores que trabalham nas escolas da periferia é a utilização de discursos/ensinamentos que tenham conexão com a realidade concreta dos alunos, sem provocar demasiados sentimentos pessimistas com relação ao futuro. Os professores que exercem a docência universitária, além dos conhecimentos técnicos inerentes a área relacionada ao curso, também precisam de diferentes abordagens quando se referem às possibilidades profissionais dos estudantes após a formação superior.

Durante a minha vivência escolar, era comum a indagação dos alunos sobre a aplicabilidade de certos conteúdos, principalmente nas matérias de exatas “é muita continha professor!”, “não vai servir pra nada quando a gente sair da escola”, dizíamos. Os professores nos respondiam com exemplos do cotidiano, mas geralmente associavam a alguma área profissional “essas fórmulas serão utilizadas quando vocês forem arquitetos, engenheiros, físicos, médicos etc”. No entanto, a resposta não nos convencia. Não éramos tão ingênuos. Como estávamos expostos a todos os tipos de mazelas sociais, as nossas esperanças encontravam-se interditadas. Quem mora na periferia sabe que a dinâmica é de muitas dores; pessoas assassinadas, violentadas de diferentes maneiras, entregues ao vício das drogas e álcool, dificuldades econômicas etc. 

Nas instituições de ensino superior, os estudantes procuram saber quais os campos da profissão que podem absorvê-los após a formação. Mas as respostas dos professores são tão ilusórias que os estudantes acreditam que a mudança de classe social é um movimento inevitável. O otimismo exacerbado pode pavimentar uma aguda frustração no futuro. Nesta sociedade, o racismo e o capitalismo não podem ser ignorados. Os professores desconsideram que o espaço universitário não é mais ‒ predominantemente ‒ “leitoso”, como há vinte anos. O número de negros e pobres deu um salto após as cotas raciais, entre outras políticas públicas de acesso à educação. Portanto, tudo que se dizia na sala de aula às camadas privilegiadas não se aplica ao novo perfil de estudantes. Os alunos precisam ser conscientizados dos obstáculos que enfrentarão. O debate também deve fluir no sentido de estimular práticas antirracistas, identificação e denúncias. Nós sabemos que os brancos sempre tiveram vantagens no mercado de trabalho, e não importa se as pessoas negras são mais capacitadas. Tão verdade que o número de brancos medíocres, nos espaços de decisão nas empresas, não é pequeno; e o número de negros competentes que estão desempregados, e em cargos de baixa relevância, é enorme. Por tudo isso, nunca se esqueça de bell hooks. Sejamos honestos com os nossos alunos. A democracia racial não existe. Repassem!


¹  Gloria Jean Watkins (1952-2021) utilizava o pseudônimo bell hooks, redigido com letras minúsculas. 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

+ sobre o tema

A cultura dos concursos de Miss e os 30 Homens sobre nossos corpos

O concurso de miss, diversas vezes atacados pelas mais...

Das jornadas de Junho em 2013 ao impeachment e a uma campanha capenga em 2016, “várias queixas”

Nas eleições de 2016 e na conjuntura nacional encontramos...

Aos que amam mulheres negras

“As mulheres negras sentem que existe pouco ou nenhum...

para lembrar

Descolonizar escola, nova batalha de bell hooks

Começar por sempre pensar no amor comouma ação, em...

As dicas de livros, filmes e viagens de Aline Midlej

Aline Midlej nasceu no Maranhão, no seio de uma família...

Gênero, raça e ascenção social

por Sueli Carneiro ASHELL ASHELL PRA TODO MUNDO ASHELL Ela mora...

A peça ‘O Topo do Montanha’, com Taís Araujo e Lázaro Ramos, reestreia em SP

Diferente, revelador e profético Por Douglas Belchior Do Negro Belchior O...

Conceição Evaristo, a intelectual do ano

Quando Conceição Evaristo me vem à memória fico feliz, não importa a situação. Aliás, justamente em horas em que estou estressada a visita dessa...

A tese de Sueli Carneiro

A questão racial é o ponto cego da consciência nacional. O racismo constitui a herança mais degradante e perversa de nossa história pré-republicana. Não...

O que casa grande nos oferece?

Atualmente escutamos discursos que exaltam a restauração e acordos de paz, a criação de espaços de diálogo horizontais e equânimes. Sabemos que essas narrativas...
-+=