Naruna Costa: “Para me proteger, evitei papéis que sexualizam mulher negra” 

Naruna Costa tem pelo menos 15 anos de experiência na TV e no teatro, e um currículo com papéis como Elza Soares e Angela Davis — mas a personagem mais profunda de sua carreira, ela conta, é Cristina, de Irmandade, série brasileira da Netflix que acaba de ser renovada para a segunda temporada, ainda sem data de estreia.

Na série, ela é uma advogada que trabalha no Ministério Público e descobre que seu irmão, desaparecido há anos, está preso e é o líder de uma facção criminosa em ascensão nos anos 1990. “Ela transita pela ideia de ser uma pessoa boa ou má, ética ou não ética. O que define a Cristina são os dilemas, isso é apaixonante, poucas personagens negras têm essa profundidade no Brasil.”

A Universa, Naruna fala sobre a ausência de mulheres negras no audiovisual, questiona quais são os papéis que cabem a atrizes como ela, e divide um sonho: fazer mais papéis que não estejam associados à cor da pele.

UNIVERSA: Você tem no currículo papéis como Elza Soares, no teatro, e Angela Davis, na TV. Qual é a importância destas personagens para a sua carreira?

NARUMA COSTA: Eu considero que a minha trajetória está um pouco afastada da maioria das atrizes negras no Brasil. Apesar de não ter tanta relevância no sentido de ser mais popular, mais conhecida, tive privilégio de variar muito as minhas personagens, e fugir de estereótipos. Acho de extrema importância qualquer papel que esteja descolado de um estereótipo que sujeita a mulher negra à subalternidade e à inferioridade. Fazer uma professora em “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, um filme que teve projeção nacional, foi muito importante, porque é uma figura de dignidade absoluta, e foi tão importante quanto fazer a Angela Davis no ano passado, no especial “Falas Negras”, da Globo.

E qual dessas personagens mais te inspira?

Ser escolhida para fazer Angela Davis foi uma honra, ela é uma mulher que me representa muito, conversa com a minha militância e com a luta negra no Brasil. Mas acho que todas as personagens que eu fiz, de alguma maneira, conversam com as minhas lutas

Naruna Costa como Angela Davis, no especial “Falas Negras”, exibido em 2020 pela Globo (Foto: Bob Wolfenson/Netflix)

O que fez com que você pudesse interpretar esses personagens, enquanto a maioria das atrizes negras ainda recebem os mesmos papéis?

Quando eu comecei, tinha consciência de que deveria lutar por papéis que não me colocassem num lugar de inferioridade, quase por defesa pessoal. Eu sou cria de favela, sabia que se entrasse no audiovisual fazendo personagens que me caracterizassem de forma violenta, isso ia reverberar em ainda mais violência nas ruas.

Para me proteger, sempre evitei personagens hipersexualizadas. Eu já era sexualizada fora do trabalho simplesmente por ser uma mulher negra, então, mesmo precisando trabalhar, eu fugia dessas personagens.

Claro que é muito importante ter mulheres negras no audiovisual, mas a gente precisa questionar a qualidade dessas presenças. Nas gerações passadas, o importante era simplesmente estar ali, garantir espaço. Se hoje é possível que eu negocie meus papéis, é graças às atrizes negras que vieram antes, que colocaram o pé na TV e não tiraram mais.

Tem algum personagem que você sonha interpretar?

Eu não tenho uma personagem dos sonhos. Meu sonho, como de muitas atrizes negras, é realizar papéis que não estejam colados à cor da nossa pele.

Qualquer grande papel que tenha uma função para além da figura da mulher negra vai ser um sonho realizado — não só artisticamente, mas pensando no social. Uma atriz negra fazer um personagem em que a questão da negritude não está imposta é sinal que a sociedade avançou, que a figura negra é vista de forma humanizada.

O que é ser uma atriz negra no Brasil em 2021? Quais são os avanços?

Eu vejo melhora, mas não acho que seja significativa. A gente ainda caminha com passos muito lentos. Não só falta avançar na discussão racial, como há retrocessos. Por mérito do movimento negro e do movimento cultural, chegamos a um ponto em que é impossível abandonar a questão da representatividade. As crianças hoje têm alguma referência, o passo sempre será para frente. Quando eu era criança, a falta de referências era tamanha que muitas meninas sonhavam em virar mulheres brancas, e isso é muito violento. Hoje, as crianças negras ainda sofrem, claro, mas por resultado dessa trajetória de luta, de ocupar espaços, elas têm referências, e conseguem ver beleza no cabelo crespo, na cor da pele. Isso é muito positivo.

Qual é o papel da arte na sua vida e na vida de meninas que estão crescendo hoje nas periferias?

Eu comecei no teatro, e entendo o teatro como um lugar de discussão muito além do ambiente institucional da escola. Não é só um espaço de entretenimento, é um direito — mas, infelizmente, não existem políticas públicas que pensem a cultura desta forma. Sempre estudei em escola pública, e me considerava uma boa aluna, mas saí da formação básica com uma defasagem imensa de informação a respeito do meu país, da política, da história da população negra. Tudo isso eu fui aprender, debater e questionar a partir do teatro. Não oferecer artes como direito básico é uma forma de fazer com que a gente questione menos.

Em entrevista a Universa, a Luana Xavier disse que tem preferência pelo teatro em relação à TV por acreditar que o palco traz mais liberdade de atuação. Você concorda?

Eu acho que existe sim essa liberdade. Mas eu vejo que isso vem mais do teatro de grupo — no meu grupo, o Clariô, a proposta é de autonomia, diversidade. A maioria das produções ainda está muito vinculada a profissionais homens e brancos, onde negros têm poucas possibilidades de exercer grandes papeis. Para você ter uma ideia, eu fui uma das primeiras atrizes negras a fazer Antígona no teatro brasileiro, em 2017. Antes de mim, sei de duas, mas eram releituras, e não a íntegra. Antígona é uma tragédia escrita há 500 anos, montada quase todos os anos, e não tem mulheres negras protagonistas, isso é chocante.

Em 2019, você foi a primeira mulher negra a vencer o prêmio de melhor diretora de teatro da Associação Paulista de Críticos de Artes. Que importância isso teve para você?

Eu fui a primeira mulher negra e também a segunda mulher a vencer nesta categoria. Acho que esse é um avanço gigantesco porque quebra a expectativa das pessoas, que não imaginam que é uma mulher negra que dirige qualquer peça. Esse prêmio trouxe à tona a minha existência.

Quando a gente fala do genocídio físico da população negra, é um fato terrível, especialmente no Brasil, mas há, também, genocídio da memória. Se a gente é invisível, a gente pode ser exterminado, porque não vai causar impacto.

Uma vez que eu sou apresentada a um espaço do qual eu nunca fiz parte, minha existência passa a ser contada, e nós, mulheres negras, ganhamos mais tempo de vida.

O que você e a Cristina, de Irmandade, têm em comum? O que mais te chama atenção na personagem?

A Cristina é uma personagem rica não somente por ser protagonista de uma série brasileira em uma plataforma mundial, o que é um estouro por si só, mas por ter uma trajetória muito humana. Existe um lado de Irmandade que está dentro do senso comum para um elenco negro, que é um ambiente carcerário, e de tráfico de drogas. Porém, o avanço que eu vejo na série é justamente a história da Cristina.

Ela transita pela ideia de ser uma pessoa boa ou má, ética ou não ética. O que define a Cristina são os dilemas, isso é apaixonante, poucas personagens negras têm essa profundidade no Brasil. Em algum momento da primeira temporada, a gente esquece que ela é negra, e qualquer pessoa se pergunta o que faria no lugar dela. Isso é humanidade.

E o que podemos esperar da segunda temporada?

Ainda não posso falar muito, mas podem esperar muita emoção. Se a história é forte na primeira temporada, agora há de ficar pior.

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