Nova curadora de moda do MASP: “Roupas podem ser armadura contra o racismo”

“Sempre fui curiosa”. É com essa frase que a nova curadora adjunta de moda do MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) começa a falar de sua trajetória profissional.

Hanayrá Negreiros, de 29 anos, foi anunciada no cargo em maio e, até 2022, será responsável pela curadoria do projeto Masp Renner, que une artistas e estilistas para criar obras de arte em formato de vestimenta que farão parte do acervo do Museu — nos últimos anos, ocuparam o mesmo cargo a publisher Patricia Carta e a jornalista de moda Lilian Pacce.

A pesquisadora é especialista em moda e relações étnico-raciais e passou o mestrado estudando os trajes e adornos usados em rituais de candomblé. Em entrevista a Universa, por telefone, ela afirma que “as roupas podem ser armadura contra o racismo”, frase que pegou emprestada da amiga e consultora de estilo Paloma Gervasio, e diz que, no Museu, pretende olhar para “outras histórias” da moda, discutindo o envolvimento de pessoas negras e indígenas neste universo.

As pretensões de Hanayrá parecem andar lado a lado com os ideais do MASP, que em 2019 publicou um manifesto prometendo “descolonizar o museu”, após críticas por falta de diversidade em seu quadro de curadores e entre os artistas com obras expostas.

“Minha ideia é partir do entendimento de que não existe uma história na moda, mas algumas, diversas e plurais — essas são palavras que estão presentes na missão do Museu”, fala. “As críticas são força motriz para a mudança. Não tem mais volta. Por mais que pareça que o país está em um retrocesso, esses lugares estão sendo reivindicados por corpos dissidentes — não só negros, mas indígenas e trans também. É necessário que instituições de arte e cultura pensem a partir do que é diverso e façam uma escuta atenta”, argumenta.

Foto de Therezinha Negreiros, “costureira de profissão” e avó de Hanayrá, tirada em 1953 (Foto: Arquivo pessoal/Hanayrá Negreiros)

“Pessoas negras sempre estiveram envolvidas com a moda”

Neta de costureira do lado materno e de alfaiate do lado paterno, ela conta que cresceu tendo como referência em casa a máquina de costura da avó e diz que “não tinha como” seguir outro caminho que não fosse a moda — mas, durante a faculdade, no início dos anos 2010, sentiu falta de ouvir histórias como as de sua família nas salas de aula.

“A moda, especialmente no espaço acadêmico, é muito elitista. Quando eu estava na universidade, não tive nenhum professor negro e eram poucos os estudantes negros como eu. A gente não falava de decolonialidade como hoje e a grade curricular era totalmente eurocêntrica. Mesmo quando a gente estudava o Brasil, era de uma forma estereotipada e que passava longe de referências negras e indígenas”, lembra.

Foi conhecendo mais a fundo a história da família, que se construiu a partir da escravidão nas cidades do oeste paulista, que Hanayrá virou a chave e entendeu que a moda, que pode ser um espaço de opressão para mulheres negras como ela, funciona também como ferramenta de resistência. “Roupas podem ser armadura contra o racismo”, afirma.

Quando encontrou a certidão de casamento dos avós maternos, recentemente, Hanayrá se deparou com o termo “costureira de profissão” para designar o ofício da noiva, Therezinha Negreiros. “Achei muito chique”. brinca. O avô paterno, que era alfaiate, ainda está vivo para contar episódios de quando costurava ternos no Maranhão, nas décadas de 40 e 50.

“Compartilhei essas histórias em sala de aula e muitos alunos negros contaram que também tinham a costura como profissão na família. Caiu a ficha de como a moda é uma memória coletiva para famílias negras”, lembra.

As memórias da minha família me deram força e repertório para trabalhar na área, porque entendi que as pessoas negras sempre estiveram envolvidas com o vestir — desde as mulheres escravizadas que trabalhavam em casas especializadas no Rio de Janeiro, até as que costuravam para as mulheres brancas nos casarões das fazendas no interior de São Paulo.

A moda é política

A historiadora e pesquisadora de moda retoma que, entre os séculos 19 e 20, itens como joias e sapatos eram essenciais para diferenciar pessoas negras escravizadas de pessoas negras que se libertaram e conseguiram ascender social e economicamente.

“Quando o homem negro consegue ter acesso a algum estudo e ascender social e economicamente, sendo contador ou comerciante, por exemplo, ele ainda é exceção. É aí que o sapato vira um item tão importante. Naquele tempo, você reconhecia um escravizado porque ele andava descalço, então usar um sapato social bem lustrado, brilhando, era uma arma contra o racismo. Um século depois, a gente ainda confunde um homem negro de terno com um motorista, um segurança ou outras posições consideradas subalternas, mas, de toda forma, estar ‘bem vestido’ é uma possibilidade de não ser parado pela polícia. Por isso, digo que as roupas podem servir de armadura contra o racismo”, explica.

A percepção de moda como uma ferramenta de resistência surgiu apenas na fase adulta, depois de concluir a graduação. “Tive algumas questões que têm a ver com o racismo desde a escola, como não usar cores muito fortes, por exemplo, porque não combinariam com a pele negra. Eu era uma das poucas alunas negras. Seja batom vermelho, esmalte colorido, tudo isso eu demorei para usar, mesmo tendo em casa a referência da minha mãe, que é uma mulher muito colorida”, lembra.

No começo, a moda me oprimiu, sim, mas hoje consigo entendê-la como ferramenta de libertação, de resistência.

 

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