A nova geração de brasileiros donos de casa que rompem tabus e ‘padecem no paraíso’

Desempregado há dois anos, o engenheiro ambiental Philippe Maciel, de 32 anos, tem uma rotina cheia de trabalho. Só pela manhã, troca fralda, faz mamadeira, sai para brincar, prepara almoço. Sua “chefe”? Alice, a filha de um ano e sete meses.

Por Noemia Colonna Do BBC

Desde que pediu demissão do último emprego, Maciel representa um tipo de arranjo doméstico que vem avançando aos poucos no Brasil: homens que dedicam 100% do tempo a cuidar dos filhos e da casa.

A tendência reflete impactos da crise econômica e de mudanças culturais, apontam especialistas. Entre 2005 e 2015, por exemplo, homens e mulheres passaram a dividir um pouco mais os afazeres domésticos, segundo a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Essa repartição, porém, continua desigual no país. Em 2015, mulheres gastavam, em média, 20 horas e meia por semana em tarefas de casa e os homens, dez horas – a diferença no trabalho doméstico entre os sexos caiu uma hora e meia em dez anos.

Ainda assim, assumir o papel de “dono de casa” não costuma ser fácil para os homens. Maciel, por exemplo, sentia-se incapaz como marido e profissional, e chegou a entrar em depressão.

“Não gostei muito no início, até porque não escolhi ficar em casa. Por isso sempre tive na cabeça que precisava conseguir um emprego e contribuir com dinheiro o quanto antes”, diz.

Foi preciso uma injeção de ânimo da mulher para o engenheiro se encaixar na nova função. “Ela me disse que também poderia estar naquela situação, e que eu não percebia que estava cuidando da coisa mais importante que temos na vida”, conta o morador da capital paulista.

Em março deste ano, a BBC Brasil publicou um chamado nas redes sociais para saber quem são os homens brasileiros que optaram por cuidar dos filhos enquanto as mulheres trabalham fora. Algumas das centenas de respostas estão detalhadas nesta reportagem.

Escolha e adaptação

Na casa do publicitário João Ricardo Bessa, de 31 anos, em Salvador (BA), a decisão veio logo quando o casal soube que a mulher estava grávida de Vinícius, hoje com cinco meses.

“Minha esposa tinha um emprego mais estável e eu poderia trabalhar de casa. Por isso, decidimos que o melhor seria eu passar mais tempo com nosso filho”, diz.

A adaptação, relata Bessa, não foi fácil. “Coisas que eram simples, como ir ao banheiro ou tomar banho, hoje ganharam contornos estratégicos. Tenho que fazer de tudo para o bebê ficar seguro.”

E os desafios continuam, afirma a mulher de Bessa, a publicitária Dannie Karam, de 30 anos. “Quando tenho um dia cheio no trabalho também quero atenção do meu marido, mas ele está cansado de ter cuidado do bebê o dia todo. E ainda me sinto culpada por sobrecarregá-lo.”

O comerciante carioca Victor Borges, de 39 anos, diz que ser “dono de casa” aprofundou sua relação com João, de dois anos e meio.

“Uma coisa é chegar em casa e dar um beijinho no bebê, brincar com ele. Outra, completamente diferente, é cuidar e tê-lo sob sua responsabilidade”, afirma ele, que cuida da criança três dias por semana – o resto do tempo é dividido com a sogra e a mulher.

Em busca de tranquilidade, a família se mudou da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro, para Guapimirim, no interior do Estado. A distância entre a nova morada e o trabalho na capital (70 km), para onde Borges vai duas vezes por semana, foi decisiva para a opção do casal.

“Sempre ganhei menos que minha mulher e queria ter essa experiência de cuidar de filho. Se fosse para sacrificar um emprego, que fosse o meu.”

Contexto econômico

Para Regina Madalozzo, professora de Economia do Insper, o cenário econômico ainda pesa mais do que mudanças culturais nesse avanço dos homens no ambiente doméstico.

“Muitas vezes esse homem se vê desempregado ou precisa apoiar a esposa que ganha mais. E nem sempre ele faz isso de bom grado, pois a cultura conservadora fala mais alto”, avalia.

Em 2004, 46,3% dos homens que trabalhavam também cuidavam das coisas de casa – o índice passou para 52,9% em 2015 – entre as mulheres, a proporção é de 90,9%.

Madalozzo diz que ainda prevalece no Brasil a crença tradicional na “divisão sexual do trabalho”: o homem cuida da manutenção financeira e a mulher, da ordem familiar. A ideia, diz, vem perdendo espaço gradualmente, sobretudo entre gerações mais jovens.

“Mas ainda não é um fenômeno e não atinge todas as camadas sociais. Até porque as pessoas ainda ficam espantadas quando escutam que o homem abriu mão de uma aceleração do mercado de trabalho para se responsabilizar pelo lar, integral ou parcialmente.”

Papel da legislação

O surgimento de mais “donos de casa” também depende, avalia a professora, de mudanças na legislação trabalhista. Decreto do ano passado elevou a licença-paternidade de cinco para 20 dias, mas no setor privado abrange apenas firmas cadastradas no Empresa Cidadã, um programa federal.

Pelo mundo, a licença paternidade também tem ganhado terreno apenas recentemente na maioria dos países.

Na Suécia, por exemplo, país pioneiro na concessão de licença-paternidade, um dos pais tem direito a 480 dias de licença, e o governo paga 80% dos salários a quem decidir ficar com o filho em casa nos primeiros 390 dias. Além disso, o pai conta com três meses de licença remunerada – e a mãe tem quatro meses e meio.

Para o administrador Antonio Carlos LaCava, de 37 anos, que vive na Suécia há dez anos, o apoio do Estado foi fundamental para se tornar um pai mais presente para os filhos.

“Isso nos dá possibilidades infinitas de estarmos mais perto de nossas crianças e experimentarmos o espaço doméstico”, avalia.

Limão em limonada

Há também quem tenha transformado a função de “dono de casa” em negócio.

O jornalista Cláudio Henrique dos Santos, 45 anos, de São Paulo, fez da experiência uma profissão: hoje é palestrante sobre o tema e autor do livro O Macho do Século 21: o executivo que virou dona de casa. E acabou gostando (editora Claridade).

Ele viveu a experiência após acompanhar a mulher, recém-contratada em Cingapura. Não conseguiu visto de trabalho e viu-se obrigado a ficar em casa – e encarar o preconceito que isso pode envolver.

“Quando a mulher fica em casa cuidando dos filhos, é normal. Mas se for o pai, aí ele é vagabundo, encostado. Ao viver na Ásia, tive a impressão de que faria mais sucesso se dissesse que era bandido do que dono de casa”, relata.

A partir da experiência, ele diz ter entendido como era injusto com suas funcionárias quando atuava como executivo na área de comunicação.

“Tinha uma equipe de homens e mulheres que trabalhavam até tarde. E toda vez que uma delas pedia para sair no horário, eu achava que não tinha comprometimento, pois não imaginava que essa mulher cumpria outra jornada de trabalho em casa”, conta.

Hoje, com a filha já crescida, e não mais no papel de “dono de casa”, ele vive em Paris e vem ao Brasil a cada 45 dias para dar palestras sobre o que chama de “macho do século 21”: aquele que divide tarefas e tempo com a mulher.

“Ao ser dono de casa percebi o quanto somos reféns do machismo que diz que temos que ser provedores a todo custo, e isso inclui não se envolver 100% na paternidade. Ser pai é mais do que botar comida na mesa, é também dar carinho e afeto aos filhos. Mas como somos criados em meio ao machismo, não nos damos o direito de falarmos sobre isso, e nos escravizamos”, avalia.

Mãe de Alice, a bebê do começo da reportagem, a advogada Isabella de Lima, de 28 anos, diz ver com naturalidade a permanência do marido em casa.

“Sempre acreditei na igualdade entre homem e mulher, em direitos e deveres. Ele ficar em casa é tão natural como seria se eu ficasse. Até hoje é ele, amanhã pode ser eu.”

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