No dia 07 de julho de 1920, o jornal A Noite noticiou uma batida feita pela polícia do Rio de Janeiro – então capital federal – na rua Alice, no largo da Otaviana, em Madureira. Segundo a reportagem, os sons de um batuque levaram os policiais até o local, onde foram apreendidos “bancos, tambores, punhais, tigelas, pólvora, reco-recos e muitos outros apetrechos bélicos próprios para a feitiçaria”. A dona da casa era Rita Cordeiro, uma senhora conhecida como feiticeira, por causa dos despachos e trabalhos que ela fazia.
Um passeio por jornais do Rio de Janeiro e de outros centros urbanos do país públicados entre os últimos anos do século 19 e as primeiras décadas do século 20 mostra que eles estão recheados de notícias como essa: batidas policiais em espaços que ficaram conhecidos como casas de feitiçaria, mas que na verdade eram terreiros de candomblé e casas de umbanda, duas das mais importantes religiões de matriz africana no Brasil.
O desfecho imediato dessas ações policiais costumava ser o mesmo: os objetos apreendidos ficavam com a polícia (como prova do crime de feitiçaria) e os ditos feiticeiros, feiticeiras e quem mais estivesse nas casas ou nos batuques, passavam uma ou duas noites “no xadrez”.
Havia uma intenção muito clara por trás dessas ações policias e da maneira como elas eram noticiadas na época: criar uma relação imediata entre as religiões de matriz africana e a criminalidade.
Não bastava prender aqueles que professavam tais religiões: era necessário criar uma cultura da intolerância – para que a opinião pública não só apoiasse, como vibrasse com as batidas policias e todas as histórias que conectassem batuques, orixás, tambores, transes, despachos, cultura afro-brasileira, pessoas negras e prisões.
Foram mais de cinco décadas em que um acordo entre o alto escalão da política brasileira e os principais veículos de informação do país alimentou um imaginário no qual não existia nenhum espaço para a diversidade religiosa que cultuasse as heranças africanas.
O resultado disso? Sentimos até os dias de hoje.
Foi apenas no ano de 2007 que o dia 21 de janeiro foi decretado como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Uma intolerância que, infelizmente, é ampla e irrestrita, mas que no Brasil tem uma forte tendência a discriminar aqueles que professam religiões de matriz africana.
Dados recentes mostram um crescimento expressivo das denúncias de intolerância religiosa nos últimos anos. Não é possível entender esses dados sem relacioná-los à cultura de ódio em que estivemos mergulhados nos últimos anos. Uma cultura que, vale dizer, foi muito bem construída para manter toda uma estrutura de poder que ordena o país há, pelo menos, duzentos anos.
Tudo isso para dizer que a intolerância religiosa às culturas de matriz africana não é apenas um detalhe nefasto da sociedade brasileira, cuja parcela significativa também odeia padres e pastores que atuam junto aos mais pobres, aos usuários de drogas e à comunidade LGBTQIAPN+.
A intolerância religiosa é um sintoma do quão profundas são as raízes do racismo no Brasil. Estamos falando do uso de termos como “magia negra” para designar aquilo que é considerado “religião menor”. Estamos falando da destruição da imagem de uma santa negra em rede nacional. Estamos falando de crianças e jovens que são apedrejadas nas escolas por estarem usando contas ou turbantes brancos. Estamos falando de terreiros que são incendiados por serem o que são. Estamos falando de mães de santo assassinadas na porta de suas casas. Estamos falando de uma cultura da intolerância que organizou a própria ideia e experiência de Brasil.
Não podemos mais tolerar o intolerável.