O dia em que PN entrou na tenda da cafunagem

percebi que o mal da midiotia atinge agora o grau de pandemia, e é preocupante a sua ubiqüidade.

Por Lelê Teles Do  via Guest Post para o Portal Geledés

Reprodução/ Twitter

convidaram-me, os daimons, a peregrinar por este mundo de meu deus com a minha Tenda da Cafunagem, templo da cafunice, e que disseminasse o cafunismo aos homens de boa vontade.

vim parar em Londres, primeira parada.

deparei-me com uma grande massa de jovens e pessoas de meia idade adornadas com um raio no olho.

pensei tratar-se de uma campanha de divulgação de um desses novos filmes futuristas.

soube que velavam a morte de uma grande estrela do mundo pop.

pra mim, até aí morreu Neves.

David Bowie chamava-se o velado.

sua imagem estava por toda a parte. havia – usando uma linguagem exegética – choro e ranger de dentes.

vi que ali meu negócio prosperaria.

midiotas abundavam.

abri a tenda. o vento era pouco para farfalhar o tecido que me redomava.

deitei-me – porque sou um esquálido faquir – em minha cama de pregos.

em 15 minutos entra o primeiro cliente.

tirou as sandálias de forma educada e inclinou-se em cumprimento, de forma reverente.

dei-lhe 25 minutos de cafuné em seus ralos cabelos ruivos, depois uma xícara de chá de ervas; ele sentou-se à minha frente e falou:

Mestre Cafuna, homem de luminosos pensamentos, criatura de eólica energia, sábio que já lambeu os seis sovacos de Shiva, chuvou-se com a chuva e satirizou sátiros.

uma dor lancinante me atordoa desde ontem – prosseguiu o cliente com voz embargada – passei o dia inteiro a ofender um colega pelo Facebook, simplesmente porque ele se recusou a por um raio no olho e dizer que não gostava da “musiquinha” do David Bowie.

eu disse a ele que a humanidade inteira chorava por Bowie e que o colega era um ridículo por querer ser o “diferentão”.

disse a ele que Bowie revolucionou os costumes de toda uma geração, que o colega era um mal informado, que tinha um estilo de escrita cheio de  cacófatos e outros impropérios e enviei a ele dezenas de links que comprovam que Bowie era um semideus.

sinto-me ridículo agora e sei que agi como um midiota sentimental.

peço-lhe que arranque de mim essa culpa que me rói.
respirei profundamente, mirei a Roda Gigante girando pelo tecido diáfano e lhe falei de forma mântrica:

Pequeno Gafanhoto, relaxe.

é claro que estamos doentes e entre todas as enfermidades que nos acomete a Culpa é a mais dolorosa.

estamos sempre a buscar mecanismos de escape por nossa vergonhosa indiferença frente à brutal exploração que sofre a maior parte do gênero humano.

as chacinas de rua não nos arrancam lágrimas, provocam-nos uma exterior indignação.

o feminicídio, e todas as outras necroses sociais, não nos atormentam.

que hoje em África, na Ásia, no Oriente Médio e nas Américas pessoas são brutalmente submetidas as mais aviltantes formas de humilhação, como a fome e a tortura física e psicológica, não nos faz menos glutões e sorridentes consumistas.

como conseguimos sobreviver a tudo isso sem nos indignar e botar para quebrar?

ora, Gafanha, porque estão, periodicamente, nos dando um placebo para mitigar esse mal-estar.

a morte de um Michael Jackson de vez em quando ajuda-nos a nos unir, fraternos, para realizarmos, de forma coletiva e coreografada, o que Marcel Mauss chamou de expressão obrigatória dos sentimentos.

choramos ao lado dos outros para nos humanizar, para mostrar que somos feitos do mesmo material e que sentimos as mesmas dores.

essa fuleiragem toda, esse mise-en-scene, é um grito por solidariedade, por qualquer copo ou qualquer trago de qualquer coisa que nos faça esquecer a nossa Culpa secular.

os feiticeiros-farmacêuticos já derrubaram até mesmo as próprias torres, mercantilizando assim um lenitivo barato que pagamos com o Medo, mais medo.

um exemplo claro que de que esses placebos têm efeitos colaterais.

assim, nos dão, paulatinamente, uma dose desse sofrimento coletivo pela imagem de uma figura pública para nos redimir.

mas isso é apenas desencargo de consciência, Pequeno Gafanhoto.

veja o nível de midiotia que você estava impregnado, seu colega disse que não gostava da música de Bowie e você falou em revolução nos costumes, na moda, nos olhos… o que isso tem a ver com gostar ou não da música dele?

você disse a ele que a humanidade chorava a morte do seu ídolo, e isso é um brutal superdimensionamento do artista que você aprecia.

você está a confundir uns espécimes humanos com toda a espécie.

a humanidade está em guerra por comida, por por moradia, por água…

nesse momento toneladas de bombas estão a ser despejadas em pequenos vilarejos mundo a fora.

quem está preocupado com a morte do Bowie é uma moçada que tem acesso à propaganda midiática ocidental.

e mesmo assim, uma pequena parte dela.

vocês aí do olho pintado, não queiram ser A Humanidade!
menas, Gafanha, menas.

quanto ao cacófato eu nem vou comentar, que não passei dias subindo e descendo o Himalaia, com fardo de feno nas costas, para ocupar-me de tão chã divagação.

se o senhor estivesse sobre a Lei da Sharia, estaria sujeito a levar 150 chibatas em praça pública.

sorte sua, no cafunismo não temos disso, aplicamos apenas um castigo e é o que lhe vou infligir para lhe tirar arrancar a Culpa que lhe dói.

dar-te-ei 50 chineladas na bunda. com Havainas molhadas.

ele sentou-se em silêncio, baixou as calças e eu o açoitei sem piedade.

depois do açoite ele se foi, levando consigo a sandália de látex que fiz de látego, depois de depositar a oferta na caixa de espórtulas.

mas o sacana  deixou-me com uma dúvida:

o que diabos significa PN?

palavra da salvação.

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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