Negro nem quando morre aos milhões gera comoção social. Isso no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Recife, em Ferguson, em Nairóbi, ou em qualquer lugar do mundo. Essa é uma das marcas do ideário racistas da sociedade capitalista. Como diria Malcom X, Não há Capitalismo sem Racismo. O filósofo e cientista político camaronês Achilles Mbembe[1] afirma que o negro foi inventado como um jazigo, isto é, um símbolo de morte e destituído de qualquer humanidade. Assim, são seres para o trabalho braçal e que aguentam mais dor. Isso aconteceu no passado e ainda acontece intensamente no presente. Basta ver que mulheres negras recebem menos anestesia na hora do parto do que as mulheres brancas. Isso se deve as práticas racistas de médicos que acreditam que elas aguentam mais dor.
Por Denílson Araújo de Oliveira, do Afro21
No Brasil, mesmo após a morte, os corpos negros não são respeitados (vide os casos dos flagrantes forjados e as mudanças das cenas dos crimes praticados por policiais contra jovens negros em várias cidades brasileiras). No Rio de Janeiro, celebra-se o futuro com a arquitetura pós-moderna, com o Museu do Amanhã e o MAR (Museu de Arte Rio) apagando o passado dos patrimônios negros. Lembremos que aonde foram construídos esses museus, e em seu entorno, é apontado por arqueólogos e historiadores como parte de um grande cemitério de negros escravizados que chegavam mortos ou morriam logo após a travessia pelo atlântico. Algumas estimativas falam em milhares de corpos que não tiveram a dignidade respeitada pois eram jogados em grandes buracos, não possuindo o direito de sepulcros individuais. O riquíssimo material encontrado pelos arqueólogos dos patrimônios negros permanece encaixotado em contêineres, não sendo usados para problematizar as violências produzidas contra os negros escravizados e as suas consequências hoje.
Hoje para embranquecer a paisagem desta localidade, bulevares foram construídos (restituindo novamente a paisagem do mundo civilizado nos trópicos, como já teria feito Pereira Passos a 100 anos atrás) e estátuas dos Deuses Minerva, Marte, Ceres e Mercúrio, que no passado foram usados para europeizar a paisagem com a chegada da princesa, foram recolocados hoje nos Jardins Suspensos do Valongo, destituindo de qualquer simbologia afro-diaspórica. As perguntas que se colocam são: Por que não estatuas de orixás já que estamos falando da região conhecida como Pequena África? Por que os patrimônios negros estão encaixotados? Por que não se discute as consequências do modelo colonial hoje?
Os patrimônios negros continuam não tendo a dignidade respeitada. Tornaram-se atrativo turístico despolitizado. O cais do Valongo, esse lugar de horror aonde seres humanos eram vendidos, é hoje transformado pela burguesia racista carioca, em sua parceria com o Estado, em uma expressão do passado descolado do presente transformado em marketing para o turismo. O racismo, diria Simone de Beauvoir[2], precisa produzir a indignidade para justificar o extermínio dos negros e de seus patrimônios não havendo crime e assassinos.
No contexto das olimpíadas, os devotos do neoliberalismo festejam o sucesso (silenciando a política segregadora) dos megaempreendimentos e eventos que promoveram ações ‘revitalizadoras’ no Cais do Porto, no Maracanã, obras na vila militar no bairro de Deodoro e na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O bem estar produzido foi, concomitantemente, marcado pelo mal-estar gerado para a população negra, majoritária nesses bairros, com as remoções, a militarização de seus territórios e o genocídio. Os telejornais (GLOBO, SBT, RECORD, BAND) são os propagadores dessas ideologia nas suas coberturas diárias de criminalização dos pobres e negros e a glorificação da cidade do capital. Assim, carregam, dentro dos seus discursos, um Hitler e um Rei Leopoldo da Bélgica. Ou seja, facínoras que mataram milhões de pessoas. No Brasil, esses facínoras que mataram e estupraram milhões de negros e negras no período colonial, hoje tem seus nomes em logradouros de ruas, praças, pontes, colégios, estátuas e bustos. Para parafrasear Racionais MC’s, quem mata muito negro ganha uma medalha de prêmio. Um ser humano descartável no Brasil.
– Mas quem se importa com isso!?
– Isso nem aparece nos livros didáticos e nos jornais!?
Se você acha quer mais JUSTIÇA, isto é, LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE resolve o problema, meu caro amigo ou amiga, a história racista do capitalismo nos ensina pensar mudanças mais profundas. Lembremos Toussaint L´Ouverture, em 1804 quando liderou uma revolta no Haiti querendo afirmar os ideias da Revolução Francesa (LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE) para os negros escravizados. O Haiti foi massacrado e todas as elites pela América difundiram o medo que esse exemplo não se espalhasse, isto é, o medo branco da onda negra. Ser um negro tipo A custou caro, já diria os Racionais MC’s. Esse mesmo medo branco da onda negra ainda alimenta o discurso que condena os rolezinhos, que persegue e mata jovens negros, especialmente a noite, e é o mesmo que retira a culpa dos assassinos e culpabiliza os próprios mortos.
Para alguns, a minha fala é de um pessimista. Em verdade, sou um realista que compreende que a mudança de nossa história passa por múltiplas escalas do agir político. A mudança de mentalidade é um dessas escalas que envolve uma enorme completibilidade. Os grilhões da mente ainda não foram rompidos totalmente. A luta envolve a destruição da mentalidade racista, colonial escravocrata que nunca foi exterminada. Mentalidade que alimentou os policiais a darem 111 tiros em cinco jovens negros que voltavam de uma comemoração no bairro de Costa Barros (RJ). Mentalidade que continua homenageando racistas, estupradores e escravocratas em nomes de ruas, bairros, estátuas, bustos, pontes e escolas. Mentalidade que domina as faculdades de medicina que acha que homens e mulheres negros aguentam mais dor, logo recebem menos remédios e anestesias. Mentalidade racista que silencia o protagonismo negro na história e usurpa os seus saberes.
A Mentalidade das Candaces, Abdias do Nascimento, Nzinga Mande, Zumbi, Geledés, Solano Trindade, Dandara, Amílcar Cabral, Luiza Mahin, Patrice Lumumba e tantos outros que lutaram contra o racismo e o colonialismo precisa povoar nosso imaginário e fortalecer nossas ações. Que a ancestralidade negra e todos os espíritos que se rebelaram contra o sistema ecoe para implodir a universidade, a polícia e o Estado racista, machista, homofóbico e classista.
Como dirá Gog: “Revolucionários do Brasil fogo no pavio, fogo no pavio, fogo no pavio”
[1] Crítica a Razão Negra. Antígona: Lisboa, 2014.
[2] O segundo sexo. São Paulo: Difel, 1967.
Denílson Araújo de Oliveira é Professor da Faculdade de Formação de Professores da UERJ